“… Satisfeito, desligo o telefone e
ataco a biografia de Garcia Marquez. Nem chego ao início da prosa. Fico-me por
curta frase, boiando no branco da página, que de tão vazia parece inchada: «A
vida não é a que cada um viveu, mas a que recorda e como a recorda para
contá-la.» A primeira reacção é de puro e não surpreendido gozo, com a
prodigiosa e ternurenta imaginação do homem, aposto que matéria e forma do seu
caminho me deliciarão. Depois, o psiquiatra mete-se ao barulho - passei grande
parte da minha vida a escutar as dos outros. E a verificar como ele tem razão!
Ninguém fala do que aconteceu. Dos
célebres factos, que alguns, ingénuos ou mal intencionados, consideram tão definitivos
que os poupam a toda a discussão. A memória das pessoas despreza a maioria, mas
aos importantes emoldura-os em afectos que vão influenciar as palavras. Por
isso, nunca tenho a arrogância de julgar saber o que de facto se passou. Os
episódios que me são relatados perderam, para sempre, odores, matizes,
sonoridades. Sobram alguns, a que se juntaram outros, adicionados pela cabeça
de quem fala, como temperos escorrendo de dedos cozinheiros.
São sobretudo esses – os temperos!, não
os cozinheiros - que me interessam. Porque assesta alguém, com tal denodo, os
holofotes da memória naquela direcção? O que se esconde por detrás de palavra
triste, lágrima furtiva, sorriso nostálgico? «Saber» a história pouco ajuda,
perceber como a pessoa a vive ensina um bocadinho a seu respeito, para isso
procuro transformar-me em espelho falante. Mais do que fiel, modestamente
ambicioso. Não basta que se reveja, a corpo e alma inteiros, no que digo,
preciso de lhe oferecer os truques risonhos dos espelhos de feira, prontos a
deformarem a nossa respeitável aparência. Devolvo-lhe o que diz, acrescentado
de passwords - hoje em dia o calão tecnológico fica sempre bem! — para
eventuais esconderijos dentro de si. Muitas delas serão erradas, neurónio algum
aceitará o desafio. Mas de vez em quando uma janelinha — que digo eu?, simples
fresta! — abre-se para o interior e a luz que acarreta é soterrada por palavras
novas que jorram, inesperadas, em sentido inverso. Trazendo outras recordações
ou apenas modos diversos de apreciar as que estavam em cima da mesa. E assim
por diante. Não em busca do striptease absoluto, pornográfico e de utilidade
duvidosa, mas da melhor compreensão dos filtros que coam o passado.
O lamento de quem me escrevia para o
Estes Difíceis Amores encaixa aqui como uma luva, dizia-lhe o psiquiatra sobre
a hipótese de uma psicoterapia: «Para quê? Para fazer uma dessas, sem
qualidade, que andam por aí?» Concluía o espectador: «E saí do consultório com
a prescrição de X pastilhas de antidepressivo por dia, mais Y pastilhas de
ansiolítico. Para ir aumentando gradualmente...» Dando de barato que há
psicoterapeutas — e prescritores! - incompetentes, este desprezo pelas palavras
e pela compreensão dolorosa mas redentora que tantas vezes acarretam, arrepia.
E contudo não surpreende!, em sociedade que preconiza alívio imediato e fácil
da angústia. Pela boca, mas de fora para dentro... Apercebo-me de que tive uma recaída
do meu «workaholis-mo».
Viro a página — «A minha mãe pediu-me
que a acompanhasse para vender a casa». O leitor guloso expulsa a pontapé o
psiquiatra. Mas este ainda inverte o título do livro, Viver para contá-la.
«Contar para vivê-la...» Engraçado, também a psicoterapia busca vida mais plena
através da construção de uma narrativa. Bendito sejas, Gabriel, mesmo o avesso
das tuas palavras faz voar o pensamento!”
Júlio Machado Vaz
Livro: O Amor É
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