sexta-feira, 7 de setembro de 2012

Para Pensar


“… Satisfeito, desligo o telefone e ataco a biografia de Garcia Marquez. Nem chego ao início da prosa. Fico-me por curta frase, boiando no branco da página, que de tão vazia parece inchada: «A vida não é a que cada um viveu, mas a que recorda e como a recorda para contá-la.» A primeira reacção é de puro e não surpreendido gozo, com a prodigiosa e ternurenta imaginação do homem, aposto que matéria e forma do seu caminho me deliciarão. Depois, o psiquiatra mete-se ao barulho - passei grande parte da minha vida a escutar as dos outros. E a verificar como ele tem razão!
Ninguém fala do que aconteceu. Dos célebres factos, que alguns, ingénuos ou mal intencionados, consideram tão definitivos que os poupam a toda a discussão. A memória das pessoas despreza a maioria, mas aos importantes emoldura-os em afectos que vão influenciar as palavras. Por isso, nunca tenho a arrogância de julgar saber o que de facto se passou. Os episódios que me são relatados perderam, para sempre, odores, matizes, sonoridades. Sobram alguns, a que se juntaram outros, adicionados pela cabeça de quem fala, como temperos escorrendo de dedos cozinheiros.
São sobretudo esses – os temperos!, não os cozinheiros - que me interessam. Porque assesta alguém, com tal denodo, os holofotes da memória naquela direcção? O que se esconde por detrás de palavra triste, lágrima furtiva, sorriso nostálgico? «Saber» a história pouco ajuda, perceber como a pessoa a vive ensina um bocadinho a seu respeito, para isso procuro transformar-me em espelho falante. Mais do que fiel, modestamente ambicioso. Não basta que se reveja, a corpo e alma inteiros, no que digo, preciso de lhe oferecer os truques risonhos dos espelhos de feira, prontos a deformarem a nossa respeitável aparência. Devolvo-lhe o que diz, acrescentado de passwords - hoje em dia o calão tecnológico fica sempre bem! — para eventuais esconderijos dentro de si. Muitas delas serão erradas, neurónio algum aceitará o desafio. Mas de vez em quando uma janelinha — que digo eu?, simples fresta! — abre-se para o interior e a luz que acarreta é soterrada por palavras novas que jorram, inesperadas, em sentido inverso. Trazendo outras recordações ou apenas modos diversos de apreciar as que estavam em cima da mesa. E assim por diante. Não em busca do striptease absoluto, pornográfico e de utilidade duvidosa, mas da melhor compreensão dos filtros que coam o passado.
O lamento de quem me escrevia para o Estes Difíceis Amores encaixa aqui como uma luva, dizia-lhe o psiquiatra sobre a hipótese de uma psicoterapia: «Para quê? Para fazer uma dessas, sem qualidade, que andam por aí?» Concluía o espectador: «E saí do consultório com a prescrição de X pastilhas de antidepressivo por dia, mais Y pastilhas de ansiolítico. Para ir aumentando gradualmente...» Dando de barato que há psicoterapeutas — e prescritores! - incompetentes, este desprezo pelas palavras e pela compreensão dolorosa mas redentora que tantas vezes acarretam, arrepia. E contudo não surpreende!, em sociedade que preconiza alívio imediato e fácil da angústia. Pela boca, mas de fora para dentro... Apercebo-me de que tive uma recaída do meu «workaholis-mo».
Viro a página — «A minha mãe pediu-me que a acompanhasse para vender a casa». O leitor guloso expulsa a pontapé o psiquiatra. Mas este ainda inverte o título do livro, Viver para contá-la. «Contar para vivê-la...» Engraçado, também a psicoterapia busca vida mais plena através da construção de uma narrativa. Bendito sejas, Gabriel, mesmo o avesso das tuas palavras faz voar o pensamento!”

Júlio Machado Vaz
Livro: O Amor É

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