quinta-feira, 2 de agosto de 2012

Para Pensar


"Estômagos simplesmente reconfortados ou distendidos pela gula, a maralha avançou para o ritual dos presentes. Um dos primos mais velhos compôs uma figura credível de Pai Natal, apenas traído pelo exagerado entusiasmo com que retirava do saco os presentes a si próprio destinados.

Em ocasiões de barafunda, refugio-me num canto, esboçando os sorrisos e respostas indispensáveis, mas com a família não há problema - sou um morcão e pronto! Por carinho e orgulho de Avô babado, seria inevitável que Gaspar fosse para mim a estrela da noite. Confortável e seguro no colo materno, espiava a agitação circundante com atenta e elogiada placidez. Quando os presentes começaram a submergi-lo, como as cheias do Douro fazem a Miragaia, a mudança foi espantosa. Porque ninguém resistira à tentação de o mimar, o improvisado Pai Natal gritava o seu nome constantemente e os embrulhos faziam bicha, à espera das mãos da Mãe. E ela, extremosa, descascava-os antes de lhe servir o conteúdo.

O miúdo foi apanhado na voragem. A exigência de um novo espanto e o incitamento à alegria seguinte obrigaram-no a saltar de surpresa em surpresa, sem verdadeiramente as descobrir. Às tantas, vi-o aflito, com firmeza agarrando contra o peito dois brinquedos e por isso incapaz de corresponder ao desafio de explorar mais um. Quando as ofertas de todos aqueles reis magos de trazer por casa terminaram, Gaspar parecia mais confuso do que feliz. E brincara pouco, se chegara a fazê-lo.

Não lhe faltará tempo ao longo do ano, dirão vocês. Claro, nada disto é um drama, e contudo merece reflexão. O dilúvio de coisas sobre as pessoas — que não apenas as crianças! — impede que as revirem, à cata de segredos e fascínios. Limita-lhes o tempo de atenção e sobrevivência, cada uma é vertiginosamente substituída por outra, da qual se espera maior satisfação. Esta sucessão interminável, vivida a uma cadência alucinante, reflecte o triunfo das ditas: simbolicamente, porque lhes confiamos a responsabilidade de serem arautos das palavras que não dizemos; filosoficamente, porque o seu reinado significa que uma sociedade se tornou dependente delas para se aproximar de paz ou alegria interiores. E por isso, as sucessivas desilusões não são vistas como falhas da teoria, mas como simples provas de que a coisa ideal ainda nos espera, capaz de compensar a tristeza pela perda de efeito da última que nos encantou.

Longe de mim preconizar a confiscação de algum presente do Gaspar. Mas penso que tal enxurrada prejudica o imaginário do puto, lembro-lhes frase básica para os processos educativo e de crescimento: «Agora não posso brincar, entretém-te um bocadinho.» Ora a insatisfação expectante que o dilúvio de brinquedos provoca não favorece a autonomia imaginativa que transforma papel amarfanhado numa bola, carrito solitário em grande prémio completo ou o boneco favorito no interlocutor para longa conversa «adulta».

Recordo mensagem preventiva sobre as drogas: «São apenas substâncias, o efeito depende do contexto e dos indivíduos.» Pois bem, os indivíduos que somos desenvolveram um contexto cultural que nos tornou «coisas dependentes» graves. Depois, resta o «pormenorzinho» de que por cada miúdo inundado de presentes existem muitos vivendo atroz seca de brinquedos. Em África? Não, aqui. Invisíveis? Só para quem use antolhos egoístas.”

Júlio Machado Vaz

Livro : O Amor É