quinta-feira, 7 de março de 2013

Psicologia Cognitiva: As Narrativas



“O modelo cognitivo alternativo: o contador de histórias

Para uma introdução à psicologia emergente, pense-se que quando se conte uma história a crianças, em particular, convém incorporar o dissonante, o desconhecido e o inesperado. Assim, elas exercitarão também competências de crítica e reflexão ao explorarem temas reais e actuais, históricos e fantásticos, sem manutenção de esforço.
O argumento narrativo é poderoso: as próprias crianças pensam em forma narrativa, até mesmo mais do que os adultos. Quando um professor lhes pergunta como passaram um fim-de-semana ou umas férias aprazíveis e movimentadas, será provável que organizem os eventos em narrativas.
Nessa acepção narrativa, falar de psicologia cognitivo-narrativa implica insistir na mudança de ideologias, valores e crenças. Ainda que se continue a insistir em mudar o mundo e a psicologia contribua para a mudança humana, os fenómenos de transformação ocorrem, invariavelmente, entre pessoas, sistemas biológicos que sentem em estruturas como a família ou a escola. Digamos que possuímos modos de nos relacionarmos e de arvorarmos «identidade» definidos por processos profundos de ordenação, não linguísticos mas em imagens, que conduzem à realidade experienciada, à prática de avaliação (bem/mal, certo/errado…), à distinção de atitudes convenientes e à partilha social.
Entendidos como constructos centrais das crenças do indivíduo e dispositivos que dirigem a experiência, o estudo desses processos cognitivos sugere que, aos cinco anos, uma criança já tem uma opinião sobre os assuntos e que a mudança passará por novas situações que desafiem ideias derivadas de scripts (guiões, roteiros, enredos dramáticos da vida), estereótipos sociais (sem individualização, os negros, os ciganos, as mulheres, os homossexuais…) e cenários culturais (a casa, a escola, a igreja da minha terra…). Scripts emocionais são estruturas cognitivas básicas, associadas ao que é regular e imutável, por oposição ao que é irregular (opcional): repetidas festas de aniversário, idas ao supermercado…
Essas estruturas de pensamento, para sequências predeterminadas de acção, podem ser complexas - a ambivalência amorosa, a inveja profissional ou o altruísmo social. A criança já observou alguém amar e odiar ao mesmo tempo a mesma pessoa, alguém desejar possuir algo de outrem, alguém efectuar uma bondosa acção… Na infância, assimilamos muitas histórias que operam em simultâneo, com base em saberes quotidianos e televisivos. Na idade adulta, os scripts incorporados podem rondar as centenas. Desde pequenos que desenvolvemos «teorias» e agimos de acordo com essas estruturas cognitivas. Nos relatos de adultos sobre as suas experiências criativas, estes enfatizam a transformação pela palavra. Ainda que se sugira não bastar verbalizar, mas também sentir e pensar, impomo-nos agir em conformidade com a linguagem em contexto.
A forma escolhida de debater atitude e comportamento, com suporte em símbolos, na historiografia e no mito, passará pelo recurso metafórico, iniciando-se este texto por estabelecer as fronteiras sem limites entre ciência psicológica e arte.”

(…)

Da psicanálise à psicologia cognitivo-narrativa

Nem sempre é possível formular em palavras o que imagens e guiões dramáticos movimentados representam em extravagantes ideias. Exemplos concretos, presentes na pintura e na historiografia, continuam a servir o guião epistémico revolucionário para a ciência cognitiva, narrativa e metafórica.
Barbara Hardy constatou a pertinência do modo narrativo, organizador do «eu», em processos psíquicos comuns, explicitando-a nas seguintes palavras:
“Sonhamos em forma de narrativas, fantasiamos acordados em narrativa, recordamos, antecipamos, temos esperança, ficamos desesperados, acreditamos, duvidamos, planeamos, revemos, criticamos, construímos, aprendemos, odiamos, amamos em narrativa. Para vivermos, construímos histórias acerca de nós próprios e dos outros, acerca do passado e do futuro, pessoal e social.” (Hardy, 1978, p. 13).
Sabe-se que o sonho não contém uma vertente narrativa, consistente e verbalizada. Ele é visual. Ao acordar construímos uma história, uma narração, ainda que a falha de nexo entre os episódios nos possa deixar confusos. Tal como no sonho, nem sempre conseguimos em estado de vigília criar uma sequência lógica ou congruente dos factos e da nossa biografia, ao contrário do que se passa no processo literário, segundo a apreensão de Susanne Langer, com a qual poderemos captar a cadência do balançar e do versejar:
“Geralmente, o processo de formularmos as nossas próprias situações e biografia (...) segue o mesmo modelo (do drama) – ‘pomos isso em palavras’, contamo-lo a outras pessoas, compomo-lo em ‘cenas’, de forma que as nossas mentes possam agir em todos os seus momentos significativos. A base desse trabalho de imaginação é a arte poética, que aprendemos a partir do ritmo de embalar e que se desenvolve até ao mais intenso ou sofisticado drama e ficção.” (Langer, 1953, p. 400).
A psicologia cognitivo-narrativa é uma abordagem psicológica que consuma a análise da forma (estrutura, estilo, coerência...) e do conteúdo da experiência (melodias com temas conflituais, tantas vezes, entrançados), com implicações educacionais e psicoterapêuticas. A estrutura cognitiva não tem só uma base lógica, na concepção induzida pelo pensamento convergente, mas está sujeita a processos emocionais/analógicos centrais.
Na educação formal, observa-se um continuum que vai do pensamento convergente (exigindo-se uma resposta «certa») ao pensamento divergente, eliminada uma única orientação pré-determinada para uma conjectura colocada. Como se disse, ao pensamento lógico chamou-se formal ou paradigmático, enquanto o pensamento narrativo foi aproximado por Bruner da contemplação pelo filósofo e psicólogo americano William James (1842-1910).
Os trabalhos iniciais em psicologia narrativa datam de 1984-1986, devendo-se a van Dijk e a Jerome Bruner. Instigam à apreensão do princípio organizador narrativo para as acções humanas. A narrativa estrutura a experiência humana, tantas vezes repleta de falhas nos encadeamentos entre eventos e de hiatos entre ocorrências não cumpridas.
Esse modelo psicológico possibilita o prazer de trocar histórias, a busca de sentido para a existência humana e a adesão ao significado atribuído à identidade com vista à resolução de discrepâncias na vida. Os temas vitais são como melodias sujeitas a ruídos, ou como engrenagens que emperram porque um qualquer objecto se atravessa nas rodas dentadas.
Atendendo a essas incongruências, na consulta psicológica interpreta-se o vivido ou a ficção na interacção clínica, negociando-se com o psicoterapeuta os significados da experiência imediata que nos torna possuídos, irreflectidos e incapazes de distanciamento para pensarmos. Pressupõe a construção de vínculos sociais ou de novas engrenagens entre episódios mais consistentes e subsequente acção/interacção nas dinâmicas relacionais mais satisfatórias.
A psicologia cognitivo-narrativa parte, portanto, da concepção metateórica construtivista e dos significados dados ao «eu» pelos interlocutores, estando a interpretação a dois determinada pelo conteúdo narrativo e pela coesão estrutural duma história de vida.
Importa referir que em toda a biografia perpassam histórias nem sempre associadas a conteúdos sexuais. O argumento sexual deixa de ser observado como único para desvelar a verdade na técnica psicanalítica de associação livre.
À noção de «verdade absoluta» sobrepõe-se o significado plural e a sua partilha negociada em comunidades científicas poderosas. A linguagem ressente-se dessa imposição: os conceitos mudam, por iniciativa desses grupos de pressão.”

Fonte:
Jornal de Ciências cognitivas
(Desembro 2007)
Sociedade Portuguesa de Ciências Cognitivas

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