A entrevista é longa, mas, por certo, vale a pena ler, até
porque ao longo da mesma ficamos a perceber os pontos de vista do Professor
Óscar Gonçalves. E no final, sobra a sensação de que se aprendeu um pouco mais.
Resta-me informar que a entrevista foi concedida à Sociedade
Portuguesa de Psicoterapias Construtivistas, em Fevereiro de 2011.
“O convidado nesta nova gravação, desta vez em volta da psicoterapia e
neurociências, é o Professor Óscar Gonçalves, psicoterapeuta, investigador e
Professor Catedrático de Psicologia da Universidade do Minho.
A entrevista teve lugar a 19 de Fevereiro de 2011, em Lisboa, e segue a
seguinte estrutura:
Part I - Da Psicoterapia às
Neurociências.
Part II - Modelos e Práticas em
Psicoterapia, integracionismo.
Part III - Manuais, tratamentos
empiricamente suportados, evolução das psicoterapias.
Part IV - Formação e Treino de
Psicoterapeutas
Part V - Questões dos
participantes
Part I - Da Psicoterapia às
Neurociências
Aníbal Henriques: Óscar, obrigadíssimo por aceitares este
convite da Sociedade e este formato de entrevista. Nos últimos anos o teu
percurso sugere uma crescente aproximação à biologia, às neurociências e à
experimentação. Como é que tu te situas hoje em termos teóricos e
meta-teóricos? Continuas um cognitivista, um comportamentalista, um
construtivista? Sentes-te tanto investigador, como neurocientista, como
psicólogo clínico, sem que daí resulte necessariamente qualquer
incompatibilidade ou contradição?
Óscar Gonçalves: São uma série de questões e não são
fáceis. Antes de mais, obrigado Aníbal por este convite, por esta oportunidade
para esta conversa. Se calhar uma das coisas que me aproximou mais das
neurociências foi o desalento com essa excessiva carga ideológica que as
psicoterapias têm e vêm tendo nos últimos anos - se se é cognitivista, se é
comportamentalista, se é humanista, experiencial... - Eu julgo que isso
testemunha algum atraso do desenvolvimento da psicologia em geral e da
psicoterapia em particular, que é um pouco o produto da nossa ignorância acerca
do que é a patogenia em termos psicopatológicos e quais são os principais
ingredientes da mudança terapêutica. E foi isso. Foi um processo de afastamento
progressivo - com esta balcanização da psicologia - e a aproximação às
neurociências foi também um regresso. Eu comecei (não sei se sabias isso) eu
comecei na área da experimentação e comecei na área da psicofisiologia. O meu
primeiro trabalho foi como monitor de psicofisiologia (...).
A.H.: Embora a estudar os processos subliminares, não é?
O.G.: Mesmo antes disso, comecei a investigar sono (já há muitos anos, em 1979,
foi o primeiro trabalho que eu tive) e pronto, depois fui fazendo o meu
percurso. Portanto, eu continuo-me a considerar um psicólogo, continuo a ser um
clínico, sou um psicoterapeuta e eu acho que a psicoterapia ganha imenso com a
aproximação às neurociências. Uma metáfora que eu utilizo hoje em dia com os
meus alunos – nem todos gostam – é a metáfora da fisioterapia. Eu acho que a psicoterapia
deve tomar como modelo a fisioterapia. Ou seja, essa capacidade de nós
percebemos o que é que está mal e recuperarmos funcionalmente o nosso paciente
de uma forma o mais específica possível. Para isso precisamos de compreender
muito melhor a patofisiologia e as implicações que a recuperação funcional -
neste caso funcional psicológica - trazem nesta patogenia. Eu penso que hoje em
dia a psicoterapia ainda está muito como ‘sauna e massagens’ - uma pessoa tem
uma lesão no joelho e vai fazer uma massagem, tem umas saunas, mas não tem um
trabalho de recuperação funcional. Eu acredito que a psicologia irá evoluir
para uma maior especificidade, para guiarmos estereotaxicamente a nossa
intervenção, portanto sendo muito mais específica, muito mais focal, muito mais
centrada na funcionalidade e para isso, obviamente, as neurociências penso eu
que estão a ajudar.
A.H.: São o caminho.
O.G.: Ajudam bastante neste processo.
A.H.: Muito bem. Esta assumida aproximação às ciências biológicas e
bio-comportamentais, às neurociências, significa apenas uma maior valorização
das variáveis biológicas ou também uma desvalorização das variáveis
psicossociais.
O.G.: Significa, provocatoriamente, uma maior valorização das variáveis
sociais.
A.H.: Explica lá isso.
O.G.: Por que… uma forma, às vezes errada, das pessoas perceberem algum do
desenvolvimento das neurociências é pensar que a contribuição das neurociências
para a psicologia passa por um determinismo neurobiológico, um determinismo
biológico. Ora o avanço das neurociências vai precisamente no sentido contrário
- no sentido de mostrar como é que a funcionalidade psicológica altera a
matéria biológica, produz plasticidade biológica. E, portanto, a mim
exactamente o que me interessa é como é que nós podemos utilizar a
funcionalidade - o psicológico, o comportamento, a cognição nas suas várias
dimensões, a linguagem, a percepção, a memória, a emoção - para produzir
plasticidade em termos dos sistemas neurobiológicos. E essa tem sido a grande
contribuição das neurociências. Eu costumo dizer aos meus alunos que quando eu
estudava, nos anos 70 e era aluno de psicofisiologia, se nós disséssemos que os
neurónios continuavam a multiplicar-se na vida adulta reprovávamos. Hoje, se
dissermos que não há neurogénese na vida adulta reprovamos.
A.H.: Grande diferença, não é?
O.G.: Portanto, quer em termos de neurogénese, quer em termos de sinaptogénese
- portanto do aumento da plasticidade sináptica e do aumento da plasticidade
neuronal, portanto do aumento do número de neurónios - é uma das evidências
maiores que nós temos, quer no ser humano, quer nos vários modelos animais.
Portanto, há de facto uma aproximação, eu diria, aos modelos psicológicos e aos
modelos sociais, no sentido de demonstrar a eficácia que eles têm na alteração
dos processos neurobiológicos. Ou seja, a mim não me interessa como é que nós
podemos utilizar processos biológicos (interessa-me, mas não enquanto operante
do próprio sistema) como é que podemos utilizar neurocirurgia ou como é que
utilizamos psicofarmacologia para produzir plasticidade nos vários sistemas
neuronais, para alterar as várias redes de comunicação neuronal. A mim o que me
interessa é como é que nós podemos trabalhar psicologicamente para alterar
isso. Mais uma vez, voltamos ao modelo da fisioterapia - o fisiatra receita um
anti-inflamatório, o fisioterapeuta produz uma funcionalidade no músculo ou na
articulação para recuperar a estrutura neurobiológica e, obviamente, a
recuperação da estrutura neurobiológica cria espaço para a expansão dos sistemas
cognitivos e dos sistemas comportamentais. Portanto, estou mais próximo da
psicologia por causa da neurobiologia.
A.H.: Perfeito, fantástico. A teu ver, que contributos estão já as
neurociências a dar para um abrir de horizontes da psicoterapia? Por exemplo,
os trabalhos do Dan Siegel, do Louis Cozolino, que tentam precisamente fazer a
ponte entre psicoterapia e neurociências. Ou seja, o conhecimento do cérebro
pode mesmo informar e influenciar a psicoterapia de forma determinante ou
devemos prepararmo-nos para o desaparecimento da psicoterapia ultrapassada por
uma nova ciência?
O.G.: Hum hum. Boas questões. Para já começando pelo Cozolino ou pelo Siegel,
eles não dão nenhum contributo em si. Quer dizer, são duas obras introdutórias
importantes que chamam a atenção para avanços na neurobiologia e como é que
esses avanços da neurobiologia podem contribuir para pensar a psicoterapia de
uma forma diferente. Há sempre que ter algum, eu tenho sempre algum receio na
adesão pronta e rápida que psicólogos – neste caso até são psiquiatras – têm
aos novos modelos. Há muitos anos, nos anos 50 foram os modelos de sistema de
processamento de informação, que vieram influenciar as ciências cognitivas. Os
psicólogos embarcaram rapidamente na metáfora, esqueceram-se foi de estudar
matemática e engenharia de sistemas. E nas neurociências a mesma coisa, de
repente o cérebro ganha novo espaço de metáfora e, portanto, acaba por ser um
instrumento…
A.H.: Demasiado pregnante.
O.G.: Exactamente. Mas se ficarmos pela metáfora perdemos o essencial disso.
Nós, de facto, ainda sabemos pouco como é que as neurociências podem contribuir
para os avanços em termos da psicoterapia. Evidentemente que nós podemos
reformular tudo aquilo que fazemos de psicoterapia em termos de mecanismos
cerebrais. Dizia-me aqui há uns tempos um colega em Itália - “Ah, o trabalho
que eu faço lida com a amígdala, o que faz o outro colega lida com o
hipocampo…”. É uma boa maneira de falar, de encontrar novas metáforas para as
mesmas coisas. Mas nós temos que saber exactamente o que estamos a afectar com
que tipo de intervenção. Eu vou-te dar, se quiseres, um exemplo de investigação
que nós estamos neste momento a fazer. Por exemplo, uma das perturbações –
entre várias perturbações que nós estamos a trabalhar no laboratório, neste
momento – uma das perturbações é com os pacientes obsessivo-compulsivos. Sob o
ponto de vista psicológico, todos nós sabemos o que é que se passa com os
nossos pacientes obsessivo-compulsivos - a sua dificuldade de inibir um determinado
comportamento ou de inibir um determinado pensamento ou de inibir um
comportamento e um pensamento. Sob o ponto de vista neurobiológico é, talvez,
das patologias em que temos alguma evidência muito clara. Nós sabemos que há
uma hiper-activação de uns circuitos que são os circuitos fronto-subcorticais e
que, portanto, há ali uma hiper-activação desses circuitos e que muito
possivelmente estão ligados a esta dificuldade que o paciente tem nesses
processos de inibição.
A.H.: De parar, de interromper, não é?
O.G.: Ora, nós na psicoterapia, uma das questões que se nos levanta é: qual é
forma mais eficaz de fazermos isto? Devemos fazer paragem de pensamento? Quando
os pacientes se confrontam com o estímulo indutor da sua obsessão ou da sua
compulsão devemos fazer distracção? Muitas vezes confrontamo-nos com isso, com
os nossos pacientes na psicoterapia - porque é que não olha
para o lado? Porque é que não pensa noutra coisa? Uma coisa curiosa é que
nós verificamos há uns tempos, revendo a literatura antes de iniciarmos este
projecto, é que os pacientes que melhoravam – em estudos neurobiológicos,
portanto, de neuroimagiologia – os pacientes que melhoravam no tratamento ou
psicoterapêutico ou psicofarmacológico na obsessão-compulsão tinham uma
normalização desta hiper-activação dos circuitos fronto-subcorticais. Portanto,
havia ali uma normalização. Parecia que quer a psicofarmacologia quer a
psicoterapia – neste caso comportamental e cognitiva – era eficaz na
normalização desses circuitos. Analisando com mais detalhe a investigação, nós
verificamos que, de uma forma curiosa, isto era feito à custa de um aumento de
activação de áreas mais ligadas ao processamento sensorial visual – neste caso
a áreas mais occipitais – e portanto dava ideia que, olhando para este tipo de
pacientes, eles conseguiam inibir estes processos fronto-subcorticais, esta
hiper-activação - e portanto inibir os seus próprios comportamentos e as suas
próprias cognições obsessivas - activando melhor processamento sensorial. Isto,
por exemplo, faz sentido para todos nós que fazemos psicoterapia com pacientes
obsessivo-compulsivos – o perceber que eles quando são confrontados com um
estímulo que é ansiógeno – desencadeador da sua obsessão ou pensamento ou algo,
um estímulo externo – desencadeia um shut off do processo sensorial
rapidamente e entra numa ruminação em relação ao estímulo. Nós o que estamos,
por exemplo, a estudar neste momento em estudos de neuroimagiologia funcional,
é se isso de facto é evidente, com estímulos de forte intensidade emocional
versus estímulos de menor intensidade emocional que sejam indutores destas
obsessões e compulsões (são pacientes obsessivos de alguma gravidade). Se nós
temos uma maior híper-activação fronto-subcortical e uma menor activação das
áreas occipitais e visuais. Assim sendo, isto tem… vamos imaginar que esta
hipótese que nós estamos a trabalhar –publicámos, aliás, no ano passado na Medical Hipoteses, este artigo -, vamos imaginar que nós confirmamos que isto é verdade. Ora,
isto tem uma implicação importantíssima para a psicoterapia. Por exemplo,
mostra que é inadequado desencadearmos processos de distracção. Que uma forma
importante é, por exemplo, desencadear um forte processamento sensorial do
estímulo em termos visuais - levá-los a confrontarem-se com o estímulo e a
trabalharem, por exemplo, aquilo que eu no trabalho da narrativa chamava
objectivação do próprio estímulo. Isto só para te dar uma ideia de como as
neurociências nos podem ajudar a ter uma acção terapêutica muito mais focal. E
nós muitas vezes o que fazemos - sabemos que há um conjunto de coisas
relativamente inespecíficas que nós fazemos na psicoterapia e que é melhor que
façamos do que não o façamos, mas não temos a certeza se aquilo está a ser
específico do processo. Todos nós somos empáticos, todos nós temos uma
aceitação positiva incondicional, todos nós somos genuínos, todos nós
desencadeamos aliança terapêutica com o paciente. Mas para além de isso, qual é
o grau de operacionalidade e eficácia que nós podemos ter? E aí as neurociências
podem nos ajudar imenso.
A.H.: Para além dos factores comuns, não é?
O.G.: Exactamente.
A.H.: Os teus temas de pesquisa actual, ao que julgo saber, assentam na
interacção entre marcadores neurocognitivos e a sua estrutura cerebral e seu
funcionamento em perturbações desenvolvimentais, doenças neurodegenerativas e
processos psicopatológicos. Poderíamos dizer que nos últimos anos te interessam
mais perturbações ou doenças com maior probabilidade de uma alteração cerebral
estrutural e tanto a investigação fundamental como a clinicamente orientada e
aplicável?
O.G.: Mais uma vez… digamos que no início essa questão poderia ter uma resposta
afirmativa. Eu acreditava, quando comecei a investigar nas neurociências, que
havia de facto uma descontinuidade entre o que são alterações estruturais e
alterações funcionais. Que aquilo que nós chamamos alterações neurológicas, ou
por exemplo alterações do neurodesenvolvimento, como o Síndrome de Williams
(que é um síndrome que nós estudamos muito) ou a esclerose múltipla (uma doença
desmielinizante), ou uma demência de Alzheimer ou estudos que nós fazemos, por
exemplo, com pacientes com traumatismo crânio-encefálico, estávamos perante
alterações de natureza estrutural. E depois tínhamos um conjunto de outras
patologias (que são aquelas que nós habitualmente enquanto psicoterapeutas
trabalhamos), em que temos alterações de natureza funcional - em que a
estrutura está mais ou menos intacta mas a função está alterada. E portanto,
basicamente, o mundo das artes das neurociências clínicas dividia-se entre
estes dois grupos: aqueles que tratavam a estrutura – habitualmente um
tratamento habitualmente frustrante – e aqueles que tratavam a função. A
investigação ajudou-me a perceber que não é bem assim. Isto é um processo de continuidade
e que toda a alteração da função é uma alteração da estrutura. E, mais uma vez,
isto é obra de modelos psicológicos. Eu vi que publicaste um pequeno vídeo da
história do Eric Kandel – prémio Nobel da Medicina, um dos poucos prémios Nobel
da Medicina psiquiatra, das áreas mais ou menos mais próximas em que nós
trabalhamos – e o Eric Kandel mostrou que ao nível de um ser tão simples como a
Aplísia – foi aquilo que que lhe deu o prémio Nobel – os processos de memória,
quando nós passamos de processos de memória mais a curto prazo para memórias
mais a longo prazo (portanto com processos de estimulação), a partir do momento
em que nós damos grandes processos de estimulação todo o processo de alteração
proteica que aí se desencadeia aumenta de facto a probabilidade de transcrição
genética, e portanto de plasticidade sináptica nestes animais e os animais
mudam estruturalmente. E, portanto… aliás uma coisa curiosa, se nós num
processo de aprendizagem – vamos imaginar nalgum efeito neste encontro que nós
que estamos aqui, se está a transformar num processo de aprendizagem para as
pessoas que estão a assistir e para nós próprios – e se nós conseguíssemos
medir com algum pormenor aquilo que se está a passar, se fossemos ao nosso
hipocampo e dentro do nosso hipocampo fossemos a um tipo específico de
neurónios, que são os neurónios piramidais do hipocampo nos circuitos de
formação de memória que tem umas espinhas que são chamadas as espinhas
dendríticas - muito possivelmente os nossos processos de aprendizagem aqui
poderiam corresponder a uma maior arborização dendrítica. Ao corresponder a uma
maior arborização dendrítica, alteraram a estrutura do nosso hipocampo e,
portanto, o nosso hipocampo mudou em termos da sua forma, mudou em termos da
sua estrutura e mudou - ainda por cima uma coisa curiosíssima - mudou a
volumetria, aumentou a volumetria. Isto é uma coisa interessantíssima porque à
medida que nós trabalhamos com meios neuroimagiológicos de maior potência - e
estamos já a trabalhar ao nível do 7 Tesla (não aqui em Portugal mas lá fora;
nós aqui trabalhamos 3 Tesla e já não é mau) - mas já se conseguem ver
alterações ao nível da estrutura. Ainda recentemente, foi publicado um estudo
acerca dos efeitos da meditação (o que quer que seja que isso significa e está
subjacente à meditação) em termos de alteração de várias estruturas cerebrais.
Portanto, um programa sistemático de meditação, num grupo ligado ao Richard
Davidson em Madison, das alterações que isso desencadeia em termos da própria
estrutura. E portanto, mesmo quando estamos a trabalhar fora da patologia, no
domínio da aprendizagem e da plasticidade normal, nós estamos a desencadear
alterações estruturais. E portanto, eu diria que em tudo me interessa esta
continuidade, de tal maneira que também me permite perceber que, se calhar, nas
alterações ditas mais estruturais, em que há por exemplo uma alteração genética
do neuro-desenvolvimento (no Síndrome de Williams temos uma delecção de um
conjunto de cerca de 20 genes que têm uma grande alteração no neuro-desenvolvimento
daquelas pessoas) e, portanto, há limites para a capacidade de recuperação
cognitiva e funcional destes pacientes. Mas há espaço, há espaço de
plasticidade e, portanto, mesmo aí interessa-me perceber como é que nós estamos
capazes de chegar e, nestas alterações estruturais, desencadear um efeito. Por
isso é que trabalhamos com patologias que vão desde síndromes do
neuro-desenvolvimento, como o Síndrome de Williams, a uma patologia
possivelmente do foro neuro-imunológico – não temos a certeza absoluta – que é
a Esclerose Múltipla.
A.H.: Muito bem, interessantíssimo. Vamos talvez mudar de tema - ou não - vamos
falar de modelos, escolas, e práticas em psicoterapia.
Part II - Modelos e Práticas em
Psicoterapia, integracionismo.
A.H.: Nos anos 80 e 90 deste um forte contributo, tal como o Professor Luís
Joyce Moniz, para a divulgação do cognitivismo, do comportamentalismo, do
desenvolvimentismo e do construtivismo, podemos entender estes modelos como
abordagens menos saturadas ideologicamente e mais próximas de uma fundamentação
científica e empírica?
O.G.: A minha esperança era que sim, quer dizer eu fui… os meus primeiros
amores era o comportamentalismo, não é? Eu fui treinado como terapeuta
comportamental. Eu costumo quase dar esse exemplo, exagerando, que quando
comecei a fazer prática clínica, quando fui fazer o meu estágio no hospital -
num hospital psiquiátrico no Porto – o meu primeiro estágio de facto, de
enfrentamento clínico, eu era um fervoroso crente da ciência psicológica e para
mim na altura a tradução da ciência psicológica na prática psicoterapêutica era
o comportamentalismo. Um indivíduo que… eu basicamente percebendo como é que se
tratava uma fobia às cobras, não é?
A.H.: Sim, exactamente.
O.G.: Eu podia tratar tudo. Era tudo pequenas variantes a partir deste processo
de aprendizagem - se permites Aníbal tu já terás ouvido esta história mas vou
repeti-la aqui porque às vezes as grandes revoluções epistemológicas que nós
temos são os nossos próprios pacientes que nos trazem. Eu lembro-me de um
paciente meu que me ajudou, foi talvez um dos primeiros pacientes que me ajudou
a perceber as potencialidades e os limites da crença que eu trazia numa ciência
que dava os seus passos mas que tinha ainda muito caminho para andar. Este
paciente era um paciente – sorte de principiante - que me apareceu à consulta,
na altura nós chamávamos-lhe mais uma claustrofobia, hoje chamar-lhe-ia uma
perturbação de pânico com agorafobia, era um mecânico que me apareceu à
consulta, tinha medo de entrar dentro do carro, trabalhar dentro da mala do
carro, andar debaixo do carro…
A.H.: Locais confinados, não é?
O.G.: Locais confinados, o típico ataque de pânico, eu lembro-me que terei
passado a primeira consulta a fazer uma avaliação cuidadosa de todo aquilo que…
das contingências, tudo ali. Mandei-o vir na semana seguinte – não que não o
pudesse ver no dia seguinte mas tinha aprendido que era na semana seguinte,
portanto mandei-o vir na semana seguinte. Não tinha muitos pacientes portanto
preparei cuidadosamente a análise funcional, desenhei o meu modelo terapêutico
todo para o processo terapêutico e percebi “eu com x sessões resolvo o
problema… faço isto, vou-lhe ensinar aquilo…” - na altura sabia a
dessensibilização sistemática, que preparei. E o paciente apareceu-me na
consulta seguinte com um ar muito animado e simpático, eu julgo que tinha
desenvolvido uma boa aliança terapêutica com ele na primeira consulta, e
disse-me “bom eu nem estava a pensar vir aqui à consulta hoje mas resolvi vir
para lhe agradecer porque estou curado”. E eu costumo dizer que na altura terei
pensado que a psicoterapia comportamental sabia que era rápida mas não sabia é
que era tão rápida, não
é? Isto simultaneamente para um jovem que se inicia nas artes
psicoterapêuticas é gratificante e inquietante.
A.H.: Assustador, não é?
O.G.: Gratificante porque “uau, aqui está!”, logo à primeira, uma consulta e
este já está curado. Inquietante porque “o que é que eu fiz?”, não é? Sobretudo
o que é que eu não fiz, porque eu não fiz aquilo que era suposto fazer, e como
é que ele muda sem eu fazer aquilo que deveria ter feito. Bom, o homem lá me
explicou o que é que fez, fez aliás uma coisa curiosa, saiu da consulta… e diz
ele que na consulta foi particularmente importante aquilo que eu lhe disse – e
eu não sabia bem o que é que lhe tinha dito que tinha sido tão importante – e
ele disse “mesmo aquilo que o Sr. Dr. me disse no final da consulta”. E eu não
me lembrava especificamente o que é que de tão importante lhe tinha dito no
final da consulta e ele lá me confessou que aquilo que eu disse foi – quando
estava já quase a acabar a consulta, ele desesperado a ver que a consulta tinha
passado e eu não lhe tinha dado nenhuma prescrição específica – ele disse “ah,
sabe, tenho medo que um dia destes eu morra de uma coisa destas, tenha um
ataque cardíaco e morra” e eu ter-lhe-ei dito, em jeito de o descansar, “não se
preocupe que ninguém morre de ansiedade, a ansiedade sobe, sobe, sobe e a
partir de uma altura não sobe mais”. E ele foi a pensar nisso e chegou a casa à
oficina e pediu ao funcionário que trabalhava com ele, que ia trabalhar para
dentro da mala do carro, que fechasse a mala e que ele nem que tocasse que não
o deixasse sair de lá, porque ele ia sentir-se muito mal mas não ia morrer
daquilo. E portanto eu lembro-me que tive claramente a consciência nesse
momento que havia um conjunto de outras coisas que não as aprendizagens
específicas, e comportamento, e o pensamento, e as crenças das pessoas que são
elementos também muito importantes no processo terapêutico e que se calhar eu
não dava muita atenção até a esse ponto. Portanto, isto para te dizer que na
altura os modelos comportamentais eram para mim a forma de traduzir aquilo que
era o conhecimento da ciência na prática psicoterapêutica, da mesma forma que
os modelos cognitivos o foram (particularmente a partir dos anos 60, da grande
revolução cognitiva, a consciência que os psicólogos começam a ter de que se
não mudarem os processos de atenção, os processos de memória, os processos de
linguagem... (bom, e depois o desenvolvimento, não é?). Eu vi o Construtivismo
um pouco como uma forma de utilizar esses processos para abrir o indivíduo
potencialmente aos processos de construção, numa perspectiva de que nós somos
capazes de construir o nosso próprio cérebro, de uma forma pró-activa e de uma
forma intencional. Confesso (enfim, estou a dar esta entrevista para uma
Sociedade de Psicoterapias Construtivistas, sinto-me confortável de o fazer
porque sei que a perspectiva da Sociedade não é esta) mas desagradou-me
rapidamente o Construtivismo se transformar numa nova ideologia, numa nova
capela conceptual. Eu fui aliás dos grandes resistentes a este processo, quando
o Michael Mahoney e o Vittorio Guidano – os dois já falecidos – procuraram
criar a Sociedade Internacional de Psicoterapias Construtivistas, eu opus-me
porque o que eu achava interessante eram aqueles fóruns que nós tínhamos de
discussão. E, portanto, eu devo-te dizer que a partir do momento em que estas
coisas também se institucionalizaram, enquanto agrupamento, correm o mesmo
risco e portanto eu hoje em dia sinto-me relativamente equidistante de todas
essas sociedades e de todas essas perspectivas.
A.H.: Muito bem. Mas neste oceano de perspectivas e de conhecimentos mais ou
menos fragmentados por disciplinas e áreas de intervenção – que são as escolas
e os modelos de psicoterapia - apesar de tudo, eles funcionam como abrigo e
como âncoras organizadoras de alguma confiança para os psicoterapeutas –
sobretudo para os jovens, não é? – oferecendo limites/linhas de orientação e de
confiança para lidar com situações clínicas e humanas frequentemente demasiado
complexas, não é? Contudo isto é feito – como acabaste de dizer – de uma forma
ideologizante e portanto redutora e acabam por se constituir também as escolas
em obstáculos a uma tão necessária abertura e flexibilidade epistémica dos
psicólogos e psicoterapeutas. Então, são um mal necessário as escolas e os
modelos para as nossas práticas? E como é que vês o contributo destas escolas e
modelos para a nossa evolução e desenvolvimento como psicoterapeutas ou como
cientistas praticantes?
O.G.: Eu julgo que elas existem por duas razões essenciais. A primeira é porque
as instituições que formam, que deveriam formar os psicoterapeutas,
universitárias, técnicas – podem ser os próprios hospitais ou as clínicas ou o
que quer que seja – ainda não estão capazes de se organizar, no sentido de dar
resposta cabal à formação dos psicoterapeutas – esta é uma das razões. Depois
existem – e esse é uma boa razão para isso, como tu dizes, uma forma de os
psicoterapeutas se associarem, de se capacitarem, de se apoiarem mutuamente, de
trazerem rigor e reflexão para as suas práticas, de monitorizarem e de
instituírem sistemas de controlo de qualidade interpares da sua prática.
Portanto essa é uma boa razão, embora eu ache que deveria ser na comunidade dos
profissionais, em geral, e não em sociedades específicas mas são as
circunstâncias que levaram a esse desenvolvimento, não é? Essa é uma boa razão.
A outra resulta, de facto, no meu ponto de vista, de uma insuficiência ainda do
nosso conhecimento acerca das psicoterapias. Aliás, só isto justifica que se
mantenham a par modelos que foram desenhados de há 200 anos a modelos mais
actuais, mais baseados na investigação mais actual. Somos talvez das poucas
ciências em que isto acontece, em que os vários paradigmas científicos
coexistem e não são substituídos uns pelos outros, à medida que nós vamos
avançando - pelo contrário, levam a esta balcanização. Penso que isto também teve
a ver com o nascimento da psicoterapia. Eu não costumo situar o nascimento da
psicoterapia no Freud – há quem situe, eu acho que isso é um pós-facto – o
nascimento é o Mesmer, não é? De facto com a primeira formulação das doenças e
com um modelo interessante do magnetismo animal.
A.H.: Diz-te mais do que a psicanálise?
O.G.: Foi aí que começou. Numa coisa que era relativamente mais ou menos
enigmática, pegando nos modelos da física da altura, hipotetizou a existência
de campos magnéticos que possivelmente estariam distorcidos no indivíduo e
desencadeou um conjunto de manobras para os alterar. Isto desencadeou uma
grande controvérsia mas... aliás, o primeiro ensaio clínico por Luís XVI, é
proposto pelo Luís XVI e dirigido pelo Benjamin Franklin, quando a academia
real decide verificar então o que é que se passa. Eles fazem um ensaio clínico,
com placebo e tudo e verificam uma coisa curiosíssima que vai determinar o
futuro da psicoterapia. Verificam que, de facto, não se poderiam atribuir à
magnetização os efeitos terapêuticos das manobras do Mesmer mas nenhum punha em
causa que havia um efeito terapêutico daquilo que o Mesmer faziae que ele
chamava a magnetização. E daí até agora o que é que nós temos? Temos um
conjunto de hipóteses que se vão formando – da psicanáliseao
comportamentalismo, aos mais de 500 modelos terapêuticos que foram surgindo –
como uma forma explicativa daquilo que de facto se passa. Porque numa coisa nós
temos evidência - é que os pacientes mudam, não sabemos é muito bem porque é
que mudam, não é? E depois, juntam-se escolas a dizer “nós acreditamos que os
pacientes mudam deste modo” e ao lado acreditam de outra forma, um conjunto de
outras pessoas que as pessoas mudam através de determinados ingredientes. Por
exemplo, a psicofarmacologia passou por isso. A maior parte dos psicofármacos
de todos os grupos nascem antes da compreensão sequer até dos neuromediadores.
Um dos primeiros antidepressivos a iproniazida era um tuberculostático, não é?
E portanto, notou-se foi que os tuberculosos que andavam a ser tratados com
esse tuberculostático andavam mais bem dispostos. Fizeram um ensaio clínico e
verificaram que era um anti-depressivo, tinha um efeito anti-depressivo –
estava-se longe de saber que era um inibidor da monoaminoxidase, o que depois
mais tarde se veio a compreender qual era o princípio activo daquele
medicamento, não é? A mesma coisa com o Lítio e outros medicamentos. E
portanto, há um conjunto de coisas que nós fazemos e sabemos que são eficazes
mas ainda não sabemos quais são os mecanismos e é isto, é nisto que nós temos
de nos debruçar. E eu tenho esperança que quando isso aconteça a excessiva
carga ideológica que nos leva à constituição de sociedades distribuídas, passe
para uma perspectiva completamente diferente. Hoje em dia não faz sentido haver
o grupo dos terapeutas que prescrevem fluoxetina, aqueles que prescrevem
fluvoxamina e os que prescrevem um outro tipo de antidepressivo qualquer. Eu
acho que é por aí que temos que caminhar. Portanto, há uma dimensão positiva no
meu ponto de vista, e outra que é mais negativa nesta constituição das
sociedades.
A.H.: Como muito bem saberás muitos modelos de psicoterapia procuram
actualmente fundamentar os seus princípios e procedimentos básicos em termos
neurocientíficos. O EMDR é um deles, a Terapia de Coerência é um outro destes
modelos que assume que muitos sintomas e perturbações que os nossos pacientes
nos apresentam são memórias e saberes, produtos de experiências únicas -
aprendizagens subconscientes - que é necessário trazer para a consciência e
transformar, acreditando já que estes circuitos neuronais se podem reestruturar
e modificar. Como é que entendes este esforço de fundamentação neurocientífica
e em que medida são favoráveis aos desenvolvimentos que desejamos na área?
O.G.: Pois, eu diria que na maior parte dos casos são aquilo que eu diria
movimentos oportunísticos de ligação à metáfora, não é? Isso tudo podemos
sempre dizer. Se isso for inspirador de uma procura de validação, de facto,
científica dos processos, encantado. Mas não como uma fonte de retribuição de
um grupo ideológico. É dizer, OK o grupo dos terapeutas construtivistas ou dos
terapeutas familiares, finalmente está aprovado, têm aqui o certificado de
qualidade e de garantia IP101 que nós estamos validados cientificamente.
Aliás, eu acho que o movimento das terapias empiricamente validadas é ainda um
processo muito incipiente, não interessa saber porque é que a terapia é eficaz.
Aquilo que se procurou a determinada altura – obviamente isto foi um movimento
muito pressionado pelas seguradoras nos E.U. que não queriam estar a pagar
sessões de psicoterapia indefinidamente sem ter uma forma de certificação,
disseram vamos lá ver como é que se pode reduzir os gastos com base nalguma
evidência. E portanto, definiram-se – aliás os psicólogos foram buscar à Food and Drugs Administration os critérios de validação dos
medicamentos e aplicaram à psicoterapia. E portanto, começaram a surgir
determinado tipos de tratamentos com determinado tipo de efeito, quando
comparado nesta e naquelas circunstâncias, obedecendo a determinadas regras e
podemos dizer que a terapia é empiricamente validada. Agora, porquê?
Satisfaz-nos isso? É já algum conforto que aquilo que nós estamos a fazer nos
dá alguma segurança no trabalho com os pacientes mas é relativamente
inquietante nós não sabermos especificamente porque é que nós fazemos isso, não
é? E é esse o caminho que nós temos que fazer, em lugar de procurar que
determinados agrupamentos terapêuticos ou metodologias terapêuticas procurem esta
forma de se ligarem rapidamente à metáfora. A Psicanálise, por exemplo, está a
fazer muito isso. Vários grupos de psicanalistas que estão a procurar
fortalecer os seus modelos com base nas neurociências mas numa perspectiva
meta-teórica e não numa perspectiva de validação da investigação. Por exemplo,
nós sabermos que… estudos como o Ledoux, que são estudos - de Joseph Ledoux no
processamento emocional (do circuito curto do medo) - mostrar que as reacções
mais rápidas ao medo são de facto reacções inconscientes e que depois são
posteriormente modeladas por circuitos mais longos do medo. Bom, isto é uma
validação dos processos inconscientes? Sim, quer dizer, é de facto uma
validação de que há processos que operam fora de uma organização cortical e de
uma tomada de consciência e que influenciam claramente as nossas respostas aos
estímulos. É uma validação da teoria do James-Lange das emoções – muito antes.
Portanto procurar, de facto, fazer com que isto encaixe em modelos que depois
vão muito para além disto parece-me um exagero. O que de facto eu acho como
mais importante é pegarmos em alguns dos elementos ou algumas propostas dos
mecanismos de acção terapêutica e que os procuremos validar, experimentar com
as diferentes metodologias que temos à nossa disposição.
A.H.: Nesse sentido, alguns autores entendem que as escolas e modelos tenderão
a desaparecer e a dar lugar a princípios orientadores fundamentais de trabalho
com problemas específicos ou a processos fundamentais de trabalho com a emoção,
com a cognição, com o comportamento e a motivação. Acreditas nesta tendência e
desenvolvimento e, se sim, em que medida estamos já nesse limiar ou muito
afastados?
O.G.: Acredito, acredito, acredito - três vezes de facto. Esse é o caminho do
meu ponto de vista mas há limites para a plasticidade dos terapeutas e do
movimento psicoterapêutico. O que é que eu acho… Quando as profissões se vão
organizando criam-se super estruturas terríveis que depois se alimentam a si
próprias e, portanto, isto depois … tudo isto são de facto obstáculos ou podem
representar obstáculos. As pessoas procuram um pouco isto “isto é… valida. De facto o que eu disse…”, não é? A forma como nós acomodamos os
nossos processos aquilo com que previamente nós tínhamos construído – é um
processo normal. Piaget dizia “a dialéctica entre o coelho e a couve”- quando o
coelho come a couve não é o coelho que se transforma em couve, é a couve que se
transforma em coelho, não é? E portanto, nós somos sempre – nesta perspectiva
construtivista – o coelho e a couve e vamos sempre procurando que esta couve se
transforme em nós. E isso pode de facto ser perverso neste processo. Eu
acredito profundamente que o caminho é por aí. Quanto tempo isso levará, não
sei. Agora, acredito que se os psicólogos não forem por aí, se a psicologia não
for por aí – e a psicologia está particularmente equipada para ir por aí –
alguém irá. E isso é, aliás, uma das coisas curiosas. Neste momento, o meu
trabalho é com gente das várias áreas neurocientificas (neurologistas,
psiquiatras, neuroradiologistas, gente que trabalha também em neurociências
básicas, neurobiólogos, neurobioquímicos) e é uma coisa curiosa quando a gente
está a trabalhar com eles (com a excepção dos psiquiatras que já estão também
suficientemente deseducados a esse nível mas por exemplo se não forem aqueles
psiquiatras de orientação mais biológica – quando nos pedem qualquer coisa eles
acham que quando nos estão a dizer -“Oh pá… isto, vamos ver
então, juntar isto e juntar a psicoterapia” - e se eu lhes levanto a questão - “Mas que psicoterapia?”.
A.H.: Pois, não sabem.
O.G.: “A psicoterapia. Então não é isso que
vocês fazem? Umas coisas que vocês fazem, que são muito importantes, não é? Da
aprendizagem ”. E é isto que a comunidade científica espera de nós. Um dos primeiros
estudos que nós fizemos na área neurocientífica foi curioso que foi com o grupo
do Nuno Sousa e colaboradores da Escola das Ciências da Saúde da Universidade
do Minho (que é um neurocientista das áreas mais básicas, embora ele também
seja um neuroradiologista, um médico). E foi um estudo muito curioso com ratos
em que nós procuramos ver em que medida é que os nossos animais submetidos a
stress os afectávamos em várias tarefas de natureza psicológica, por exemplo a
tarefas de memória de trabalho, a tarefas mais de funcionamento executivo, e
portanto verificávamos que os afectávamos em vários processos psicológicos – a
memória espacial, etc., etc. – e depois fizemos reabilitação. Aquilo que o Nuno
Sousa – aliás publicámos um pequeno artigo sobre isso numa revista espanhola de
psicoterapia que era dedicada às neurociências, aPsicoterapia de Barcelona, do Guillem Feixas e colegas – e, portanto, aquilo que o Nuno
Sousa pediu é “vamos fazer uma espécie de psicoterapia a
estes animais. Vocês desencadeiem aqui um processo…” e nós fizemos. Fizemos
um processo de aprendizagem aos animais, de estimulação da aprendizagem e
encontrámos uma coisa curiosa, conseguíamos recuperar psicológica e
neurobiologicamente os animais mas era de uma forma específica: os ratos que nós
trabalhávamos memória de trabalho recuperavam em termos de memória de trabalho,
os que trabalhávamos em termos de memória espacial recuperavam memória
espacial, e por aí a fora. E, portanto, não era um one size fits all, era uma coisa de facto muito específica que nós conseguíamos nestes
animais. E eu penso que na psicoterapia o caminho também vai nesse sentido -o que é que nós podemos para recuperar deste tipo de função? - por exemplo, se nós
temos processos de memória, por exemplo, há um tipo de patologia em que temos
processos memória auto-biográfica alterada, nós sabemos como é que trabalhamos
a memória auto-biográfica na psicologia em geral. E até nesse aspecto a
neuropsicologia é curiosa, é um modelo curioso para os psicoterapeutas porque
se focalizam muito mais. A neuropsicologia habituou-se, sobretudo no domínio da
reabilitação, a ser muito mais modal na intervenção. O neuropsicólogo vai
trabalhar uma função específica utilizando essa função e recuperando essa
função. Aliás, tenho esperança – respondendo no fundo a essa questão – que o
futuro, seja o futuro das neurociências clínicas. O Erick Kandel dizia que um
dos grandes erros da história da medicina foi a separação entre a neurologia e
a psiquiatria – até por aquilo que nós estávamos a falar do que é o estrutural
e o funcional. A psicologia mimetizou sempre também a medicina, não é? E,
portanto, separou a psicologia clínica da neuropsicologia clínica. E eu
acredito que na medicina vamos assistir – não tenho a certeza, porque também
temos psiquiatras e neurologistas, lá está, não porque os pacientes precisem
que eles se dividam nestes dois agrupamentos – mas acredito que no futuro os
avanços da medicina vão aproximar a neurologia e a psiquiatria, e isso já está
a acontecer. E, da mesma forma, vão aproximar a neuropsicologia e a psicologia
clínica e é possível que nós cheguemos a uma área terapêutica em geral que são
as neurociências clínicas, em que os médicos - neurologistas ou
neuropsiquiatras se quisermos - trabalham de facto com uma das formas de chegar
aos processos que é mexendo directamente no cérebro, no bio e nós mexendo
directamente no comportamento e na cognição, mas ambos mexendo nas duas coisas,
directa ou indirectamente.
A.H.: Muito bem, perfeito, vamos esperar que sim. Óscar dirias que as escolas e
modelos de psicoterapias estão de facto a evoluir no sentido da integração?
O.G.: Não sei, eu gostaria que fosse do desaparecimento, não é? Se a integração
significar desaparecimento...
A.H.: Seria bem-vindo, não é?
O.G.: ... seria bem-vindo. Eu acho, aliás, que só caminharão para integração se
for o desaparecimento enquanto modelos e escolas, não é? - Não se justifiquem
como modelos e escolas.
A.H.: Mas nós vimos esse paradoxo, não é? Que o movimento integracionista deu
lugar a ainda mais modelos.
O.G.: Mais modelos, exactamente, porque... integracionismo de 1ª, 2ª e 3ª
ordem, portanto, e depois integracionismos… Aliás, há uma coisa curiosa, mesmo
nas sociedades de psicoterapia eu sempre me senti mais próximo da Sociedade
para a Investigação na Psicoterapia – Society for
Psychotherapy Research – do que da SEPI – Society for the Exploration of
Psychotherapy Integration. Porquê? Porque achei que a Society for Psychotherapy Research tinha esta perspectiva de procurar chegar
lá pela investigação, portanto, de procurar ver em que medida é que nós
percebemos o que é que se passa. Por um lado, perceber os resultados mas
perceber o que é que se passa em termos do processo. E nesse sentido é muito
curioso porque é muito uma sociedade sem ideologias. Na Society for Psychotherapy Research, que eu ainda frequento de vez em quando,
ninguém sabe muito bem se aquele é psicanalista ou se é terapeuta
interpessoal... a gente sabe a investigação que eles estão a fazer mas não
sabemos muito bem qual é a ideologia que está por trás. Aliás, às vezes há
surpresas interessantes “Ah… o tipo de psicoterapia que eu faço é
interpessoal”, “ah, ai sim? não fazia a mínima ideia”. Porque aquilo é um
fórum de compreensão em termos da investigação dos processos. Portanto, eu acho
que é mais por coisas deste género – não sei se a Society for Psychotherapy Research conseguirá isto, ou sequer se almeja
chegar a esse ponto – mas acho que é mais pela compreensão dos processos e da
relação entre os processos e os resultados, do que pelo grande debate
ideológico, pela criação de meta-modelos que procuram integrar outros mas
depois que por sua vez têm que ser integrados também e, portanto, é… é aquele
esquema das bonecas russas, pequenas, maiores…
A.H.: E ficamos aí.
O.G.: Ficamos por aí…
Part III - Manuais, tratamentos
empiricamente suportados, evolução das psicoterapias.
A.H.: Como saberás, continuamos a observar um esforço grande no sentido da
manualização da psicoterapia pelos modelos empiricamente suportados também, mas
não só. Continuamos de alguma forma, e apesar de todas as vantagens heurísticas
dos manuais, a correr o risco de tomar “a nuvem por Juno” , e portanto a teoria
pelo paciente, o manual pelo cliente. Achas que os manuais mudaram ou
melhoraram, de algum modo, nos últimos anos e, se sim, em que sentido?
O.G.: Pois, eu acho que os manuais cumprem funções mas têm os seus perigos, não
é? Aliás, quando se começaram a definir os critérios para as terapias
empiricamente validadas tinha que se fazer a manualização - tal como no ensaio
clínico de um fármaco temos de saber de que forma o fármaco é prescrito.
Portanto, não podemos perceber se a psicoterapia que está a ser prescrita é
efectivamente aquela se ela não estiver de alguma forma manualizada, ou seja,
se não puder seguir um conjunto de prescrições. É evidente que pela natureza do
processo terapêutico é muito difícil fazê-lo como se faz na psicofarmacologia.
Aliás, na própria psicofarmacologia é complicado porque, como costumam dizer os
grandes especialista em causao
médico também se prescreve a si próprio juntamente com o medicamento,
não é? E, portanto, é muito difícil separar estes tipos de coisas. Os manuais
podem ser um caminho de auto-disciplina importante, desde que a pessoa tenha
capacidade de trabalhar os próprios manuais. Percebermos o que é que são os
elementos centrais do manual, como fio condutor do processo terapêutico. Eu
acho que muito do processo terapêutico, muitas das pessoas perdem-se no
processo terapêutico. Um dos grandes riscos para os psicoterapeutas é não
saberem onde estão nem para onde vão com o paciente. E os manuais podem dar uma
certa compreensão de manualização, uma certa disciplina no próprio processo
terapêutico. Mas é preciso perceber que não há, no melhor manual, a resposta a
todas as instâncias terapêuticas que se colocam. A psicoterapia é também (não é
só isso, mas é também) um encontro interpessoal e o processo interpessoal da
psicoterapia é também uma fonte de mudança do próprio, dos próprios processos
do paciente. E a forma como o terapeuta está capaz de jogar isto, no próprio
momento terapêutico, é dificilmente manualizável. Portanto, para dar uma
resposta procurando ser o mais simples a uma questão que é de facto de grande
complexidade, eu diria que os manuais foram importantes, continuam a ser
importantes e serão ainda mais importantes à medida que nós percebermos a
especificidade do nosso trabalho terapêutico mas é preciso ter cuidado porque
nem tudo é redutível ao manual, aqui como na mais sistemática cirurgia.
A.H.: Exactamente. Em 2005 publicaste com Larry Beutler um volume sobre métodos
de selecção de tratamentos. É esta a tua perspectiva do que poderá ser
integração e a escolha de métodos de intervenção clínica, ou uma das
perspectivas?
O.G.: É, embora eu ache que ainda fica um pouco aquém. Evidentemente que eu não
estou capaz, quem dera que eu estivesse capaz de fazer melhor do que aquilo.
Mas o que eu acho… nesse livro, nós trabalhamos essencialmente métodos de
selecção sistemática de tratamento em função de características específicas, de
variáveis específicas dos pacientes. Como sabes, isso não é um processo que
tenha a ver com alguma originalidade da minha parte, é um processo que o
próprio Larry Beutler lançou e que eu acho que foi importante, no sentido de se
perceber em função de determinadas características, níveis de resistência,
características de coping
do paciente, níveis de internalização ou externalização, nós podermos guiar
melhor o nosso processo terapêutico, em função destas características – lá
está, são complementos ao manual terapêutico. No entanto, isto não é só isso.
Nós não lidamos só com pessoas, nós lidamos com os problemas que as pessoas têm
e isso falta ainda muito nesse livro...
A.H.: Essa variável, não é?
O.G.: ... esse é o trabalho que eu gostaria de poder fazer, no futuro.
A.H.: Hum hum. Identificas ou sublinharias algum desenvolvimento positivo entre
as psicoterapias nos últimos anos? E negativos?
O.G.: Começaria pelos negativos. Embora eu tenha sempre uma perspectiva
bastante positiva face ao desenvolvimento da ciência, e da psicologia em
particular, eu começaria pelos negativos. Eu acho que a psicoterapia está-se a
transformar rapidamente de factonum albergue espanhol em que cabe tudo - uma
mistura com terapias alternativas em que desde as ervas tal ao magnetismo não
sei quê e a psicoterapia também vai por aí.
A.H.: No mesmo pacote.
O.G.: E portanto, aquilo a que eu chamaria um movimento light da psicoterapia.
Portanto, assiste-se muito a um movimento light
da psicoterapia. Isto corresponde até a uma certa vulgarização. Um dos grandes
inimigos da psicologia em geral, e da psicoterapia em particular, penso que é
este excessivo protagonismo que nós ganhámos na comunicação social. Quando
alguns de nós começámos a trabalhar não se sabia o que era a psicologia sequer,
tínhamos que fazer esforço para as pessoas perceberem que existíamos e hoje em
dia temos que fazer esforço para ter algum anonimato, não é? Eu recebo todos os
dias na minha Universidade telefonemas de jornalistas que querem que eu opine
desde o corte de dez por cento nos salários até ao desaparecimento de uma
criança e qual é a resposta que nós temos a este tipo de… portanto, tudo isto
levou com que as pessoas aparecessem com soluções fáceis, com ideias rápidas,
com prescrições e desmultiplicou também um conjunto de vale tudo em
psicoterapia, de coisas pouco fundamentadas em termos psicológicos – já nem
falo em termos neurobiológicos – mas sem qualquer fundamentação científica.
Portanto, este eu diria que é o aspecto mais negativo. No aspecto mais
positivo, eu diria que as próprias comunidades de saúde mental começam a
reconhecer, em todos os campos profissionais, que é difícil ter acções
benéficas nas áreas da saúde mental sem ter uma acção psicoterapêutica. O
exemplo claro – eu faço muito esse tipo trabalho de formação de internos de
psiquiatria – é nos internos de psiquiatria, por exemplo. Eu penso que nota-se
nesta nova geração de psiquiatras (que é uma geração cada vez mais fundamentada
cientificamente também nas neurociência) mas que isto - lá está – a par disto
aparece um reconhecimento da importância das variáveis psicológicas e como isto
é determinante nas próprias práticas da saúde mental. Portanto, eu diria que o
reconhecimento da importância da intervenção psicológica, no domínio da
psicopatologia e da saúde mental em geral, é o aspecto positivo e a
potencialidade que nós temos para o desenvolvimento deste campo, no futuro.
A.H.: Muito bem. Podemos então passar para um outro tema agora - formação e o
treino dos psicoterapeutas?
Part IV
- Formação e Treino de
Psicoterapeutas
A.H.: Como é que entendes o velho dilema de formação dos psicólogos Boulder /
Veil- devemos treinar cientistas praticantes ou clínicos profissionais? Imagino
que defendes um modelo de treino fundamentado na Conferência de Boulder
Colorado e não na de Veil.
O.G.: Uma coisa curiosa, é preciso ter cuidado... há uma ligeira correlação
negativa entre interesses de natureza científica e sensibilidade de natureza
interpessoal, não é muito forte mas é ligeira. E, portanto, não é fácil nós
sabermos até que ponto nós temos que equilibrar estes dois processos. Eu acho
que a formação de psicoterapeutas deve ter uma forte componente, fortíssima
componente de fundamentação científica, não de formação de investigadores científicos.
Eu acho que temos que formar imensos investigadores para a psicoterapia mas eu
não defendo que o psicoterapeuta tenha que ser um investigador. Agora, tem que
saber ler investigação e tem que saber estar atualizado e compreender a
investigação e acompanhar a investigação. Da mesma forma que eu acho que um
médico tem que ter uma forte fundamentação científica no seu treino, estar
perfeitamente actualizado e capaz de absorver a investigação mas dificilmente
um grande neurocirurgião pode ser um grande neurocientista, o trabalho que tem
de neurocirurgia e o acto neurocirúrgico impede-o da produção nesta
investigação. Ou seja é muito importante dar uma base de formação científica
fortíssima aos psicoterapeutas não necessariamente no sentido de os formar como
investigadores. Alguns deles serão investigadores mas outros nunca farão
investigação na vida mas serão fortes consumidores desta investigação. Eu julgo
que o modelo de Boulder procurou que o psicólogo fosse simultaneamente um
investigador e um prático, e acho que foi importante na fundamentação da
prática científica da psicologia e cumpre aí uma determinada função de manter
os psicólogos numa certa disciplina. E, de facto, eu considero ainda que o
modelo norte-americano de formação dos psicólogos, o modelo geral, é um modelo
fortíssimo e nós vemos a facilidade com que os psicólogos se integram em
equipes pluridisciplinares, graças à grande formação que têm por exemplo em
termos quantitativos, também em termos neurocientíficos embora tenham perdido
durante um tempo, também aí, algo. E uma coisa curiosa, depois os psicólogos
perderam muito foi investigação psicológica. Deixaram de ser treinados na
própria investigação psicológica, nos processos cognitivos, coisas que de
facto, por exemplo, os nossos colegas neurocientistas nos pedem muito, não é?
Para trabalhar com modelos de cognição e modelos de aprendizagem e, obviamente,
não pegando os psicólogos, outros profissionais vão sendo responsáveis pelo
desenvolvimento. E tu vês Aníbal, que nós neste... hoje em dia vemos
investigação avançadíssima na área de tomada de decisão é feita por
neurobiólogos, na área da visão, percepção visual, é feita por médicos que
investigam em neurociências, e isto são terrenos que muitas vezes os psicólogos
foram desertificando. Mas, portanto, eu acho que a formação e a fundamentação
científica é crucial mas - é importante dizê-lo - o psicoterapeuta não tem
necessariamente que ser um investigador. Agora, tem que inspirar, tem que estar
inspirado e ter uma atitude científica na sua prática profissional.
A.H.: Então, nesse sentido o que é que poderia de imediato melhorar o treino e
a preparação dos psicoterapeutas?
O.G.: A primeira é uma formação muito forte em ciência de base psicológica (e
hoje em dia é inseparável, do meu ponto de vista, das neurociências). Não para
fazer aqui alguma publicidade mas nós acabámos de propor uma reestruturação do
currículo do nosso curso de psicologia que vai claramente nesse sentido. Em que
o 1º ciclo é, de facto, um ciclo que é organizado à volta de processos
psicológicos do 1º ao 3º ano, no qual depois há várias contribuições. Há
contribuições de pessoas que estão a estudar a aprendizagem e há as
neurociências da aprendizagem, os métodos quantitativos sobre isto, sobre
aquilo e, portanto, toda a formação é feita de uma forma de fundamentação
nesses processos psicológicos. De tal maneira que quando eles chegam às
dimensões mais aplicadas da psicologia (aqui no nosso caso vertente da
psicoterapia - mas as vertentes aplicadas da psicologia em geral) sejam
percebidas como formas de aplicação da ciência psicológica. E, portanto, que é
isso que muitas vezes foi deixado de lado na formação dos psicólogos.
A.H.: Mas precisamente a psicoterapia tem sido entendida como uma arte
fundamentada numa ciência, não é? Temos ciência suficientemente desenvolvida e
amadurecida para fundamentar as práticas?
O.G.: Eu diria muito mais do que às vezes pensamos que temos. Eu penso que
somos, enquanto comunidade psicológica, somos muito ignorantes da própria
investigação que nós produzimos e, portanto, há um conjunto de investigação
psicológica para a qual os psicólogos não têm sido suficientemente alertados.
Aliás, neste momento uma associação internacional que eu acho que está a fazer
um trabalho excelente nessa área que é a Association
for Psychological Science - a APS - que tem contribuído de facto
para trazer aos psicólogos (quaisquer que sejam os domínios onde eles estão a
trabalhar) a relevância da investigação psicológica que é produzida nas mais
diversas áreas. E, de facto, há investigação psicológica imensa com relevância
para a nossa prática clínica que nós muitas vezes descuidamos, nomeadamente (no
caso que me interessa mais) na investigação neurocientífica.
A.H.: Preferimos as escolas, não é?
O.G.: Exacto.
A.H.: Ok. Achas que os psicoterapeutas deveriam lutar pela prescrição de
fármacos? Caso os psicoterapeutas fossem autorizados, mediante treino adequado,
tu prescreverias?
O.G.: Eu costumo… esse é um dos temas… Eu dou uma unidade curricular aos meus
alunos na área clínica, na Escola de Psicologia do Minho, que se chama Bases
Neurobioquímicas da Psicologia Clínica, em que a primeira parte da unidade
curricular são o estudo dos neuromediadores e como nós podemos mexer nesses
neuromediadores e neurotransmissores, como é que podemos mexer neles (ou
psicologicamente ou bioquimicamente) – os fármacos são formas de agirmos
directamente sobre os neurotransmissores - os psicofármacos. Digamos que a
compreensão do funcionamento dos psicofármacos, em si, não é preciso ser nenhum
génio para perceber aquilo. Evidentemente que a prescrição de um fármaco é
muito mais do que a prescrição de um fármaco, mesmo sob o ponto de vista
biológico, não é? Há todo um sistema que é preciso saber lidar. Portanto, a
grande questão não se põe aí. Eu, aliás, costumo dizer nessa unidade curricular
- temos lá uma parte que é se os psicólogos devem ou não prescrever, lançamos
essa discussão. A primeira pergunta que eu lhes coloco é “quem é que prescreve mais no nosso
país?”. Os jovens começam a dizer: são os médicos de clínica geral, são os psiquiatras ou
são o não sei quê… mas quem prescreve mais é o vizinho, não é? Que
não tem uma grande, um grande treino psicofarmacológico, diz -“Á, eu tomo estas verdes também e
junto estas amarelas e tal…”. Todos nós sabemos quando eles depois
nos aparecem às consultas com o saco, com os amarelos, os vermelhos e os azuis
que foram sendo prescritos pelo vizinho que é o principal agente de intervenção
psicofarmacológica, depois é o ajudante da farmácia, às vezes também o
farmacêutico (mas só vem na retaguarda da intervenção) e aqui e além o
psiquiatra também vai prescrevendo uns psicofármacos. Eu costumo dizer aos meus
alunos e repito aqui “para
não prescrever é preciso saber muito” e, portanto, esse deve ser o
grande dilema. Nós precisamos de saber muito para não prescrever e quanto mais
sabemos menos queremos prescrever. Como sabes, eu sou casado com uma psiquiatra
e às vezes ela diz-me “quem
me dera não ter que prescrever que me dava outro campo de intervenção”.
Portanto, a questão não se põe… porquê
é que eu acho que os psicólogos não devem prescrever? Não é porque
não possam aprender prescrever, não é porque não se possa fazer a formação para
os psicólogos prescreverem. É porque há uma outra área de intervenção que é a
nossa que é intervir nos nossos próprios processos psicológicos para modificar,
chegarmos aos nossos próprios neurotransmissores. E essa é a nossa vantagem. É,
por exemplo, imaginemos que nós estamos aqui a procurar melhorar a memória de
todas as pessoas que estão a assistir a isto. Podemos dar um medicamento que
facilite o processo de memorização – infelizmente ainda não são muito eficazes,
a não ser em circunstâncias muito específicas – mas vamos imaginar que
conseguíamos uma molécula que era eficaz, no sentido do armazenamento ou da
facilitação mnésica para os nossos alunos, para os nossos doentes, para os
nossos filhos. Fantástico...
A.H.: Para nós próprios...
O.G.: ... para nós próprios, fantástico, não é? Mas isto não era eficaz se eles
não aprendessem nada, não é? Se não lessem, se não estudassem, se não
assistissem. Portanto, não vale de nada um indivíduo que vai para o ginásio
tomar esteróides anabolizantes se não faz musculação, não é? Portanto, é a
função acompanhada do fármaco. A vantagem que nós temos na nossa intervenção é
que nós, não só, intervimos nos processos mas damos conteúdos. A psicoterapia é
isso - mexe nos processos e nos conteúdos - e, portanto, o fármaco mexe só nos
processos não mexe nos conteúdos. Cria condições. Como eu muitas vezes digo aos
meus pacientes “no início o
fármaco pode-me ajudar imenso na psicoterapia com o paciente mas depois sou eu
a ajudar o fármaco, já”. E, portanto, esta dinâmica é
importantíssima. Os psicólogos precisam, de facto, de saber muito para não
prescrever, esse deve ser o grande objectivo.
Part V - As questões dos Participantes
A.H.: Ok. Em jeito de closing,
na introdução de um dos teus livros encontramos uma frase que foste buscar à
jornalista Manuel Vicent do ElPaís
que eu gostava que comentasses e que eu cito – “A vida não é só uma forma de ir substituindo uns prazeres
por outros, a carne da noiva pela de novilho, o levantamento de pesos pela
leitura de uns versos de Eliot, sem que a glória se quebre”. Ainda
te reconheceste nisto? Já lá vão dez anos...
O.G.: Obrigado Aníbal. Obrigado por me teres lembrado dessa frase. Nunca mais
li o livro, portanto,... Uma das vantagens de escrever os livros é depois não
termos que os ler e, portanto, nunca mais voltei lembrar-me dessa frase. Mas
lembro-me, ao trazeres isso, lembro-me perfeitamente da memória que tenho de
estar a escrever isso, de estar a retirar isso. Estava a acabar, nesse momento,
o “Viver narrativamente”
e essa frase que li de Manuel Vicent no ElPaís,
era um Domingo de manhã e eu estava na Plaza Nueva em Granada, com a Alhambra à
minha frente e com o Albaicin por detrás de mim. Isso quase metaforiza uma
passagem de dois meses. Acabei o livro, mais ou menos, por volta dessa altura
e, de facto, eu não vejo... eu utilizei essa frase com a qual ainda me sinto
identificado mas que eu acho que hoje em dia é demasiado simplista. Eu acho que
a gente nunca substitui completamente a carne da noiva pela carne de novilho.
Junta a carne da noiva à carne do novilho, junta o levantamento dos pesos aos
versos do Eliot – junta as duas coisas. Nós, de facto – e isso também é uma
lição da neurobiologia – a nossa unidade genética tem um template. Esse nós não
alteramos – o nosso template
genético. Mas alteramos a expressão dos nossos genes e isso é a coisa curiosa.
De cada vez que nós estamos a intervir psicologicamente numa pessoa estamos a
desencadear uma mudança – desencadeamos a transcrição – produzimos a
transcrição deste gene, portanto, de todo um conjunto de genes específicos - e,
portanto, aumentamos e produzimos plasticidade a esse nível mas sem que a
glória se perca. Ou seja, sem que o sentimento de identidade se perca. E,
portanto, apesar de todas estas descontinuidades – a volta à narrativa, às
neurociências, ao comportamentalismo ou ao cognitivismo – eu continuo-me a
sentir eu próprio. Não é? Sentado ali na esplanada da Plaza Nueva.
A.H.: Nós ficamos muito felizes por isso. Muito obrigado Óscar, por teres
aceite este convite. Se calhar agora eu iria propor algumas questões que ainda
queiram colocar, alguém dos nossos participantes e acompanhantes...
Teresa Alfama: Bom, eu vi muitas das minhas dúvidas já discutidas durante a
entrevista e foi muito produtivo para mim. Há um aspecto ainda que gostava de o
ouvir falar que tem a ver com a diferente etiologia daquilo que nós denominamos
como um mesmo sintoma (seja depressão, seja a ansiedade) poderão ter etiologias
diferentes, a nível da neurobiologia do indivíduo. Como é que nós na consulta
ou enquanto psicoterapeutas podemos, de alguma forma, ter isso em conta ou...?
O.G.: Pois, é uma questão de facto muito importante e sobre a qual nós ainda
sabemos muito pouco porque a etiopatogenia que nós fomos construindo para as
várias psicopatologias ou perturbações psicopatológicas com que vamos trabalhando
ainda é muito uma etiopatogenia hipotética. Nós habitualmente atribuímos sempre
multifactorial, uma série de factores de vulnerabilidade... e se quer que lhe
diga, eu quando comecei a estudar mais nas áreas da medicina – porque fiz uma
incursão forte, não só nas coisas das neurociências mas nas coisas da medicina
em geral, que me pareceram importantes para perceber – e foi surpreendente
aquilo de que eu fui dando conta - não tinha sequer consciência disso - também
o grau de ignorância da etiopatogenia na maior parte das doenças ditas físicas,
não só nas doenças psicológicas. Não é um processo no qual nós estamos de facto
sozinhos. Há ainda muito, muito por descobrir. Mas vou-lhe por exemplo, dar um
exemplo nas perturbações obsessivo-compulsivas que é um tipo de patologia que
nos parece, à partida, como relativamente homogénea e mesmo, sob o ponto de
vista neurobiológico, nós achávamos que tínhamos uma patologia neurofuncional
relativamente homogénea. Ora, mais recentemente começamos a ver que havia circuitos,
pequenos circuitos alterados, diferentes de um tipo de obsessão-compulsão para
outro. Por exemplo, pegando naquilo que nós chamamos habitualmente os três
grandes grupos – os lavadores, os verificadores e os acumuladores – se
quisermos simplificar só nestes três grandes grupos de patologia
obsessivo-compulsiva, verificamos que há circuitos específicos em cada um deles
que estão hiperativados e que são diferentes dos outros. De uma forma
interessante, são todos eles circuitos fronto-tálamo estriado-cortical.
Portanto, destes circuitos fronto-subcorticais que eu estive a falar, nós temos
essencialmente quatro destes circuitos e eles estão hiperativados de uma forma
diferente, em cada um dos pacientes. Ora, eu acredito que ao conseguirmos
validar isto, nós sabemos, por exemplo que um destes circuitos é um circuito
muito mais motor – que sai de áreas mais do nosso córtice motor e portanto liga
a áreas desde o subcórtice e, portanto, que está ligado a sintomatologia mais
do tipo compulsivo - são aqueles tipos nossos pacientes obsessivos que são
muito mais semelhantes naquele espectro, muito semelhantes com os pacientes
tipo Gilles de la Tourette ou outro tipo de
pacientes com perturbações de tiques. Ao passo que temos outros (e todos nós
sabemos isso dos nossos pacientes obsessivos) que são muito mais emocionais -
são habitualmente circuitos orbito-frontais subcorticais – e portanto em que os
processos são muito já de natureza muito mais emocional. A compreensão disto, a
percepção clara de que, de facto, isto corresponde a – eu não diria uma etio... eu retirava o etio, metia o patogenia porque depois perceber
qual foi a causa disto, o que é que os levou de facto a que estes circuitos
estivessem mais hiperativados do que outros, ainda é um processo ainda muito
mais complexo mas pegando só na patogenia – o compreender isto pode nos ajudar
a intencionalizar muito mais o processo terapêutico. E, por exemplo, com um
paciente que tem,... estou-me a lembrar de um paciente obsessivo que vi em
tempos que sempre que entrava numa igreja – era um homem extremamente religioso
– e ao confrontar-se com imagens sacras, vinham-lhe imagens obsessivas de cenas
sexuais. E portanto, obviamente os processos emocionais neste paciente estão
muito mais hiperativados e vão ter de ser lidados de uma forma completamente
diferente de um paciente que praticamente o seu comportamento obsessivo se
repete num ritual de verificação sistemático, quase desprovido às vezes de
emocionalidade. Quase anedótico, não é?, quer dizer..., portanto, não há qualquer
prazer que ele tire daqui e até é alexitímico a qualquer emoção que esteja
associada. E, portanto, os processos terapêuticos vão ser muito diferentes se
vamos estar a trabalhar com processos obsessivos de natureza muito mais
emocional dos outros com comportamentos muito motóricos. Portanto, a
compreensão destes processos pode nos ajudar a guiar, a direcionar com muito
maior especificidade a intervenção e não cairmos muito naquilo que nós neste
momento ainda temos que fazer. Dá-nos um conjunto de intervenções (os
psiquiatras fazem a mesma coisa: dão dois antidepressivos, um antipsicótico, um
estabilizador de humor, isto e aquilo e acolá, porque procuram atacar em todas
as frentes, enquanto ainda não conseguem perceber, por exemplo, se naquele
paciente aquele tipo de antidepressivo é mais específico para aquele tipo de
função que ele precisa. Portanto, eu acredito que este aumento da compreensão e
que um maior conhecimento da psicologia que as neurociências nos vai trazer
aumenta esta especificidade, precisamente por isto que acaba de chamar à
atenção que é: nós temos grandes grupos e dentro desses grandes grupos temos
patogenias diferentes. E, portanto, não nos chega dizer, hoje em dia dizemos a variedade de endofenótipos na esquizofrenia - temos muitos tipos de
esquizofrenia diferentes. Agora já falamos de perturbações do espectro
obsessivo-compulsivo. Já dificilmente nos queremos situar e dizer que há só um
tipo de obsessão-compulsão e cada paciente obsessivo-compulsivo é um paciente
diferente do outro e isto pode nos ajudar a perceber realmente estes pacientes.
Enfim, acho que ainda estamos muito longe daquele momento em que podemos...,
uma das coisas que fizemos esta semana, ahm... foi a primeira vez que se fez
num hospital lá em Braga, que foi uma cirurgia, uma neurocirurgia guiada pela
avaliação neuroimagiológica funcional que nós fizemos no laboratório. Ou seja,
isto não tem nada de genial nem de original, é feito em diversas partes do
mundo, mas é uma contribuição que nós podemos também dar. Portanto, o paciente
tem um tumor, numa determinada área cerebral e o neurocirurgião quer saber, ao
intervir naquele tumor, naquelas áreas onde ele vai intervir especificamente
(vai ter que guiar a sua cirurgia) que tipo de funções ele vai afectar para
poder tomar uma decisão de custos-benefícios. E, portanto, nós monitorizamos
este paciente numa série de funções, de memoria, processamento de faces -
aquelas que estariam mais associadas à área do foco da intervenção cirúrgica.
Isto permite ao neurocirurgião, agora, guiar a sua intervenção e, portanto, nos
podemos fazer estes estudos ou pré-cirúrgicos (em termos de neurologia
funcional) ou até durante a própria cirurgia, em campo aberto (portanto, estar
a ir monitorizando o paciente durante este processo). Ora, eu acredito num
futuro (que eu espero que não seja muito distante, pelo menos que eu possa
testemunha-lo mesmo que não possa ser participante ativo nesse futuro) que nós
possamos ter formas de avaliação dos nossos pacientes que nos permitam guiar,
de uma forma mais específica, a nossa intervenção. Nós dantes tínhamos os
testes psicológicos, depois viraram neuropsicológicos (adjectivaram-se ou
substantivaram-se de neuro para ganhar a função) mas desenvolveram-se antes das
neurociências , aquilo que a gente chama de testes neuropsicológicos - a maior
parte deles, neuro é à posteriori. Viram-se depois que
estavam associados a funções neurocognitivas específicas. No futuro, nós vamos
ser capazes de fazer isto através da investigação em neuroimagiologia
funcional. Aliás, eu devo dizer que a maior parte da investigação de
neuroimagiologia funcional é investigação de base psicológica (os paradigmas
são psicológicos). Pronto, depois há todo o aspecto do processamento da imagem
em termos cerebrais. E, portanto, eu acredito que no futuro nós podemos guiar
também mais especificamente a nossa intervenção, através desta compreensão da
forma como este paciente específico, obsessivo ou deprimido, está a processar
as suas situações.
A. H.: OK...
Ana Ganho: Eu aproveitava então para lhe colocar uma questão, onde eu estou
ainda um bocadinho confusa, mas de qualquer forma, existem ou vão começando a
surgir tratamentos, à semelhança daquele que neste momento começou a ser
desenvolvido nos Hospitais da Universidade de Coimbra de estimulação elétrica
exatamente nos pacientes obsessivo-compulsivos e, daquilo que tem vindo a
falar, eu entendo que o espaço da psicoterapia coloca-se nos conteúdos, mais do
que nos processos. Mas não tem receio que a psicoterapia perca terreno com
estes novos tratamentos que vão surgindo?
O.G.: Boa pergunta, não é? E aí estamos num domínio interessantíssimo que a
colega está... é uma das áreas, é uma das secções do nosso laboratório que é
uma Unidade não-invasiva de Estimulação Cerebral. Para as pessoas que não
conhecem,
portanto, nós montámos juntamente com os serviços de psiquiatria dos
Hospitais da Universidade de Coimbra e o Laboratório de Neuro-Modulação de
Harvard, montámos um serviço de estimulação cerebral não-invasiva e, neste
caso, o projeto começa precisamente com pacientes obsessivo-compulsivos e
depois, eventualmente, alargar-se-á a outro tipo de patologias. Em que é que
consiste este tipo de intervenção? São intervenções físicas, não é? De corrente
magnética (corrente eléctrica por estimulação magnética). Trabalhamos duas
essencialmente: estimulação magnética transcraneal e estimulação por corrente
directa (transcraneal por corrente directa). Vou até começar por dar um exemplo
do estudo - estamos a submete-lo este fim-de-semana para publicação – portanto,
estou aqui a apresentar em primeira mão (nunca foi, a não ser no laboratório,
este estudo ainda não foi apresentado), portanto, é o primeiro estudo que nós
fizemos não com pacientes. É um estudo de estimulação por corrente directa, a
ver se nós conseguimos modular uma coisa que é particularmente importante em
termos clínicos que é o set shifting - seconseguirmos
desencadear alguma flexibilidade no processamento cognitivo dos nossos
pacientes (mudar em termos do shift perceptual ou motor, um conjunto de
atividades motoras). E, portanto, testamos a estimulação por corrente directa
de uma área mais motora e mais dorsolateral pré-frontal (portanto mais ligada
ao processo cognitivo) e a ver se conseguimos por estimulação por inibição (por
estimulação catódica) interferir com esta actividade e por uma estimulação
excitatória (portanto anodal) se conseguimos facilitar. E as boas notícias é
que conseguimos facilitar e conseguimos inibir. Ou seja, conseguimos por a
pessoa mais inflexível ou mais flexível, quer sob o ponto de vista motor, quer
sob o ponto de vista cognitivo. Isto pode ter implicações muito importantes,
por exemplo, para o tratamento da perturbação obsessivo-compulsiva. O outro
dado curioso é que tanto faz estimularmos a área da área suplementar motora ou
o córtice dorsallateral. Portanto, acabamos por produzir o mesmo tipos de
efeito ou efeitos mais ou menos semelhantes. Depois convido-vos a lerem o
artigo, quando ele for publicado, portanto depois discutimos isso. Portanto,
nós conseguimos através de uma forma de estimulação física facilitar, também,
este tipo de processos. A sua pergunta é importante:isto retira à psicoterapia? De modo nenhum. Mas pode ajudar a
psicoterapia, tal como (voltamos à metáfora da fisioterapia) o fisioterapeuta
dá determinadas estimulações eléctricas ao músculo mas depois dá atividades
musculares ao paciente para fazer - o caminhar, o fazer exercício, o repetir x vezes os exercícios e tomar um anti-inflamatório também - não é? E
portanto, aqui temos três exemplos de cooperação de uma intervenção
farmacológica, uma intervenção física de estimulação (neste caso do próprio
músculo) mas que em si próprio não se substitui à intervenção psicoterapêutica.
Se quisermos, de uma forma mais simples, aqueles de nós que gostam de fazer
exercício e vão ao ginásio verificaram que começaram a surgir as formas de
estimulação eléctrica passiva, não é? Começaram a vender os coletezinhos que
davam choques e portanto, produziam... que pode facilitar sobretudo na
recuperação funcional mas o grande fortalecimento dos grupos musculares (a
hipertrofia que se procura criar) não é seguramente com aquelas pequenas
estimulações. Portanto, eu acho que nós conseguimos facilitar até o próprio
processo terapêutico se tivermos outros instrumentos (quer psicofarmacológico,
quer em termos de estimulação física, no limite temos até cirurgia). Eu acho
que era também uma mensagem que eu gostaria de dar porque às vezes vem esta
ideia – pronto estamos a compreender melhor os processos patogénicos, nos
diferentes tipos de patologia, porque é que não vamos para uma cirurgia? E os
nossos colegas neurocirurgiões estão cheios de boa vontade nesse sentido,
porque se nós lhes dissermos “ah isto é como no Parkinson!”. Portanto, nós
temos aqui problemas em termos da dopamina na substância nigra, portanto, eles vão lá fazem uma intervenção a esse nível, colocam lá um
electrodo, produzem uma estimulação nessas zonas e o paciente melhora ou não
melhora, consoante as situações. Portanto, se nós damos ao neurocirurgião uma
certeza absoluta sobre a localização, é evidente, o trabalho dele é fazer isso
– ficam encantados, alargam de facto o espectro da intervenção. Estamos ainda
longe disso mas podemos nalguns casos específicos já chegar aí. Por exemplo,
neste caso até os Hospitais de Coimbra julgo que serão neste momento os únicos
no país (que eu saiba) que fazem estimulação cerebral profunda na perturbação
obsessivo-compulsiva porque há de facto (e todos nós tivemos isso) pacientes
absolutamente refractários, gravíssimos em termos de perturbação
obsessivo-compulsiva. Lá está, os tais extremos perfeitamente refractários em
termos de intervenção psicoterapêutica, psicofarmacológica - e aí a nossa
vantagem da nossa Unidade - e física não-invasiva que nós pretendemos que seja
ainda um espaço antes da intervenção cirúrgica que deve ser sempre uma última
opção. Mas há também aí um caminho, para algo também... uma lesão do músculo ou
de uma articulação, também a determinada altura pode se ter que chegar à
cirurgia. Portanto, eu acho que no meu ponto de vista, há uma forma de nós
conjugarmos este tipo de intervenções. Por exemplo, no caso específico (que é
uma das áreas que nos está a encantar neste momento) daquilo que nos interessa,
particularmente na estimulação magnética transcraneal ou na estimulação por
corrente directa, é precisamente ver em que medida é que ela é facilitadora dos
próprios processos psicoterapêuticos. Neste momento, temos um ensaio clínico a
decorrer no meu laboratório na Universidade do Minho, em que juntamos um processo
psicoterapêutico modulado ou não (com estimulação externa ou estimulação
terapêutica), modulado ou não com estimulação por corrente directa, para ver em
que medida nos pode facilitar este processo. Mas a sua chamada de atenção é
particularmente importante porque convém que ao enfatizarmos a importância
destes métodos, não demos a ideia de que isto agora é simples. Se a gente
coloca uns eléctrodos ou um coil no sítio certo e a mudança é simples. São
indutores iniciais, tal como os infravermelhos no músculo podem começar a
ajudar no processo de recuperação mas dificilmente resolvem o problema.
A.G.: Eu gostaria de colocar mais uma, se fosse possível ou se não fosse abuso
e julgo que é rápida. A expressão de que falava há pouco de que “caminhamos
para as neurociências clínicas”, esta plataforma inter-universitária com a
Associação Nacional de Imagiologia será já um reflexo deste percurso? Mas ao
mesmo tempo mostrou-se algo pessimista de talvez já não poder presenciar esta
evolução das psicoterapias abraçada à imagiologia.
O.G.: Pois, eu penso que esta rede nacional de neuroimagiologia foi uma rede,
para quem não sabe, criada entre a Universidade do Minho, a Universidade de
Coimbra, a Universidade do Porto e a Universidade de Aveiro, junta dois grupos
mais da engenharia e dois grupos mais das neurociências. Os grupos das
neurociências somos nós – portanto, o meu Laboratório e o Instituto de Ciências
da Vida e da Saúde, liderado pelo Professor Nuno Sousa na Escola de Ciências da
Saúde da Universidade do Minho, o Miguel Castelo Branco, o IBILI, na
Universidade de Coimbra (portanto, isto são grupos de neurociências) e depois
junta dois grupos de engenharia - o grupo de Aveiro e o grupo do Porto e agora
está se a tentar alargar a outras universidades. Eu julgo que esta rede é uma
rede importante mas surge, sobretudo, de uma rede de partilha de um recurso. De
um recurso que é o scanner de ressonância magnética de 3 Tesla que a FCT
disponibilizou para a comunidade científica e dados os custos (não só de
aquisição mas de manutenção) só o fez porque ela responde às necessidades de
uma rede e não de um grupo específico. Portanto, nesse aspecto eu penso que deu
uma contribuição ou está a dar uma contribuição importante mas eu diria que o
desenvolvimento das neurociências vão muito para além do que se está a operar
nesta rede e a rede, neste momento, funciona menos como um conjunto de
processos avançados neste momento mas como uma partilha de recursos. Depois,
cada um dos grupos está a trabalhar coisas específicas e obviamente a partilha
entre os grupos pode desencadear ou contribuir para estes avanços mas
dificilmente ficará restrito só a esta rede inicial.
A.G.: Obrigada
O.G.: Obrigado eu
A.H.: mais alguma questão?
Marta Moreno: Eu tenho três questões. Não sei se tenho limite de tempo para ter
que optar por...
A.H.: Só o cansaço do Óscar...
O.G.: Por mim tudo bem.
M.M.: Algumas delas já foram sendo respondidas, por isso fico-me por estas
três, sendo que duas já tinha e uma delas surgiu com o seu discurso. Antes de
mais, queria agradecer-lhe porque é sempre bom ouvir mentes brilhantes que
despertam curiosidade e que alimentam essa curiosidade, a meu ver mais com a
procura das questões do que das respostas. E como tal, a minha primeira questão
tem um pouco a ver com o trabalho da neuropsicologia, como tem ocorrido nas
instituições hospitalares em Portugal. Em que medida tem trazido contributos
para o desenvolvimento da psicologia clínica a nível hospitalar? Vai ao
encontro das suas expectativas ou de algumas ideologias que possam ter trazido
para este campo?
O.G.: Muito obrigado pelos seus comentários, muito obrigado por essa questão.
Eu diria que a neuropsicologia poderia trazer mais contributos do que traz,
neste momento, precisamente porque não faz muita interface com os outros
trabalhos na área da saúde mental. Infelizmente a neuropsicologia tem ficado
muito restrita às perturbações neurológicas e dentro... isso depois depende dos
grupos que estão a trabalhar dentro da área da neuropsicologia (não quero estar
aqui a destacar uns em relação a outros) mas um dos defeitos também da
neuropsicologia foi ficar muito centrada no diagnóstico psicológico. Numa fase
inicial, era muito pedido isto – a avaliação neuropsicológica. Julgo que a
partir do momento em que as coisas se começaram a por no domínio da
neuroreabilitação ou neuroestimulação as coisas começaram a se alterar um pouco
e os psicólogos começaram a ganhar, de facto, uma perspectiva que eu chamaria
muito mais clínica (a outra chamo-lhe uma perspectiva de diagnóstico que
obviamente também é importante mas é relativamente limitada). Aí, é que eu acho
que os modelos começam a ser uns modelos particularmente interessantes,
precisamente por esta capacidade ou estas capacidades que os neuropsicólogos
foram desenvolvendo de se centrarem em processos específicos – como é que eu
recupero uma coisa como a memória, como é que eu recupero uma coisa como a
tomada de decisão, o funcionamento executivo, a linguagem (uma coisa tão
complexa como a linguagem), uma afasia de broca, após um acidente vascular
cerebral (uma coisa qualquer assim do género). E, portanto, esta especificidade
eu acho que os psicólogos clínicos têm muito a aprender com esta
especificidade. E, portanto, eu diria que os neuropsicólogos em Portugal ainda
estão muito acantonados em serviços de neurologia, com uma ainda limitada
capacidade para o cruzamento com outras áreas. Eu gostaria de os ver em
formação conjunta. Portanto, acho que eles ganhariam também em perceber muita
coisa que a psicoterapia foi desenvolvendo. Eu estou aqui a pegar num lado mas
o mesmo poderia estar aqui a dizer a neuropsicólogos se estivesse a falar aqui
com neuropsicólogo a importância de coisas que fomos desenvolvendo na
psicoterapia. Eles, aliás pedem-nos muito (...) como são coisas mais emocionais
eles têm dificuldade de trabalhar. Estou-me a lembrar de uma paciente que no
seguimento de uma mastectomia teve um acidente vascular massivo, com alterações
frontais e, portanto, fortes alterações do comportamento e da emocionalidade e
os neurologistas e os neuropsicólogos, enfim, capazes de estar a trabalhar com
ela a linguagem, as dificuldades de linguagem que ela tinha, as de memória mas
quando chegaram aos aspectos emocionais – como é que hei de lidar
com isto, esta agressividade dela face ao marido, face a isto como é que é? Com
esta impulsividade sexual dela, como é que se lida com isto? A neuropsicologia tem
trabalhado pouco isto – isto são áreas que têm sido trabalhadas mais pela parte
dos psicólogos clínicos e dos psicoterapeutas. Portanto, eu diria de uma forma
simples que há este cruzamento a fazer, um salto grande a dar e depois (uma
coisa que eu diria se estivesse a falar para neuropsicólogo), diria que os
métodos de avaliação têm que mudar completamente. E, portanto, o futuro da
avaliação neuropsicológica passa para entrada dos psicólogos na avaliação
neuroimagiológica funcional. Este é um caminho extraordinário, quer nos
pacientes neurológicos em geral, quer na neurocirurgia (na intervenção dos
psicólogos na neurocirurgia) e, portanto, à medida que os psicólogos forem
capazes de passar de uma avaliação psicológica tradicional para uma avaliação
mais funcional (com paradigmas mais psicofísicos e, sobretudo, com o apoio da
neuroimagiologia), esse será o grande salto. Aliás, é isso que nos centros
avançados de neuropsicologia, em termos mundiais, está a acontecer. Nós temos,
neste momento, um protocolo com um dos grandes centros de neuropsicologia que é
a Kessler Foundation, em New Jersey (com quem, aliás, vamos aprofundar um
processo de formação conjunta nos próximos meses) e portanto, os psicólogos lá
estão a trabalhar claramente já nesse sentido.
M.M.: Hum-hum. E, agora que o oiço, vem a minha segunda questão relacionada com
esta, ainda. Será que então poderia pensar que na formação de um psicólogo
clínico, de intervenção hospitalar, deveria culminar ou estar em sintonia
formação conjunta com neuropsicologia e psicoterapia ou deveríamos manter-nos
nesta clivagem que existe, dos técnicos que trabalham mais na área da
neuropsicologia, dos técnicos (também eles psicólogos) que trabalham mais na
área do apoio psicoterapêutico (tudo a nível hospitalar) mas em comunhão. Ou
seja, a trabalharem conjuntamente? Em que ponto é que acha (...)?
O.G.: Pois, isso é uma questão difícil de eu pegar... eu vou-lhe responder de
uma forma geral. Depois como isso se traduz depois nas vivências específicas de
cada serviço, pode ganhar alguma complexidade, não é? Eu diria, de uma forma
geral, eu gostaria que a formação fosse conjunta – um neuropsicólogo clínico em
geral que tem formação em psicoterapia e tem formação em neuropsicologia. Penso
que isso capacita muito, potencializa muito mais a formação dos psicólogos.
Embora possa perceber que depois, nos contextos de funcionamento dos serviços,
haja a necessidade de alocação e especialização melhor, mais de um psicólogo
estar a trabalhar em oncologia, especificamente (com pacientes oncológicos) ou
outro que está a trabalhar numa unidade de sexologia, ou numa unidade de
esquizofrenia (de tratamento de pacientes com esquizofrenia). E, portanto, aí
as pessoas podem estar especializadas. Mas todos eles ganham, do meu ponto de
vista, de uma formação conjunta que implique um forte conhecimento dos
processos psicológicos, um forte conhecimento dos processos psicopatológicos
nos processos neurológicos e de todas as dimensões neurocientificas que estão
por detrás disso.
M.M.: Muito obrigada. A minha terceira questão tem a ver então com algo que eu
o ouvi referir também relativamente aos pacientes obsessivo-compulsivos e que tem
a ver com algo que disse, creio eu, no início que alguns modelos têm vindo a
desenvolver que na intervenção, então em determinadas questões, nomeadamente
pensamentos ruminatórios se utiliza a distração. E que considera, de algumas
investigações que estão a ser desenvolvidas que um dos grandes benefícios das
hipóteses dessas investigações verificarem será de que então não interessa
caminhar para a distração mas sim para o foco. Percebi eu que esse foco seria
manter na ruminação ou nas ideias ruminatórias (nesses pensamentos). A minha
questão aqui, é mais no sentido de que a que nível isso seria uma novidade? Ou
seja, partindo de alguns modelos mais atrás do que esses que caminhariam para a
questão da distração como opção terapêutica, entendemos que o foco, sim e a
centração naquilo que é, de facto, a ruminação do cliente (portanto, aquilo que
de que ele realmente não consegue sair de). Portanto, se não
consegue sair de é aí que se tem de estar), sendo aí que
se tem de estar isto para mim não é novo. Não sei se será, de facto, um
conflito meu quanto à novidade perante o foco ou se de facto há algo que eu não
percebi na sua explicação.
O.G.: Muito obrigado. Agradeço a sua questão porque eu não me fiz explicar
claramente. E, aliás à medida que eu…, quando eu estava a falar nisso aqui
dei-me conta que não me expliquei bem e é bom que tenha trazido essa questão
porque o foco não é na ruminação mas sim no estímulo externo que desencadeia a
ruminação. E, portanto, vamos imaginar que eu vejo uma imagem (vou pegar num
dos estímulos que nós estamos a utilizar nessa investigação) que eu vejo uma
imagem de uma mutilação, por exemplo, e imediatamente o que acontece (o que nós
pensamos que acontece) com o paciente obsessivo que nós estamos a testar, é que
o paciente desliga dessa mutilação e entra num processo ruminativo interno, em
lugar de se focar na imagem que está e de a processar sensorialmente. O que
acontece, por exemplo, nos sujeitos ditos normais é que quando nós aumentamos a
intensidade emocional do estímulo (do estímulo visual, neste caso específico -
nós estamos só a trabalhar com estímulos visuais; podíamos estar a trabalhar
com outros mas neste estamos só a trabalhar com estímulos visuais) nós, em
sujeitos ditos normais, nós temos quanto maior a intensidade do estímulo
emocional, nós temos maior ativação do córtice visual. Portanto, há uma
correlativa ativação – quanto maior o impacto emocional, maior o grau de
processamento visual. E aquilo que dá a ideia que se está a passar,
eventualmente, nos pacientes obsessivos é exatamente o contrário – quanto maior
é a intensidade, menor o processamento visual. Aliás, se quisermos de uma forma
mais simples (se retirarmos os obsessivos e pensarmos de uma forma mais
simples) – um paciente fóbico que vê uma cobra, não é? E de repente entra num
processo emocional, ele nem está capaz de olhar a cobra. Ou o paciente
claustrofóbico num elevador que não está capaz, sequer de olhar e como nós até
(como você diz e muito bem) no processo terapêutico vamos centrando: onde é que está ali o elevador. Olhe aqui, que cores é que ele tem? O que é
que está a ver? Não é? Descentrar do processo ruminativo que ele está a ter e centrá-lo no
processamento sensorial da experiência. Portanto, não é na ruminação mas sim no
estímulo externo. De qualquer das maneiras, a segunda componente da sua questão
continua a ter toda a razão de ser e em muitas destas situações eu não digo que
aquilo que a gente vá retirando da investigação neurocientífica nos vá trazendo
algo de completamente inovador porque nós andamos a tratar gente há muito tempo
e temo-lo feito mais ou menos, segundo dizem as investigações. E, portanto,
devemos estar a fazer coisas certas. O que às vezes eu acho é que fazemos
muitas coisas e estamos a desperdiçar (podemos ser muito mais focais). E,
portanto, em muitas destas coisas podemos ir encontrar formas de perceber
melhor aquilo que nós estamos a fazer. Há um escritor que eu gosto muito que eu
vos aconselho a ler (é um colega nosso, psicoterapeuta) e escreve thrillers psicoterapêuticos. Não é o Luís Joyce Moniz que também teve o azar de
nascer em Portugal e portanto, não é tão famoso como este nosso colega que é o
Stephen White. E é uma forma extraordinária de se aprender. Eu costumo dizer
que não se aprende a fazer psicoterapia lendo o Stephen White, não se aprende a
fazer medicina lendo o Robin Cook mas nota-se a sensibilidade – eu aconselho.
Ele tem um livro muito bonito que se chama Kill Me, foi um dos últimos que
ele publicou (salvo erro o penúltimo). Não há nada dele traduzido em Português
infelizmente... e o livro começa de uma forma muito curiosa que é um indivíduo
que chega à consulta (o herói é um psicoterapeuta sempre, a personagem
principal) e, portanto, chega à consulta e começa a, como acontece muitas vezes
com os nossos pacientes (não sabem muito bem o que é que hão de dizer – cada
vez sabem mais porque vêm na televisão, nas novelas e portanto já começam a
trazer o guião do que é suposto dizer – os pacientes chegam, hesitam e não
sabem o que é que... ). Este paciente começa a contar uma história “não sei o que é que me vem agora à cabeça de estar aqui - lembrei-me da
minha fisioterapeuta”. E começa a contar esta história ao terapeuta, na primeira consulta:“sabe, as fisioterapeutas têm uma coisa curiosa (...) a minha é muito boa,
chama-se Cindy, tem uma coisa curiosa. Sabe que a maior parte do trabalho do
fisioterapeuta, a fisioterapia é feita com uma mão que às vezes é a esquerda,
outras vezes é a direita. Depois muda, dependendo da posição ou da área que
está a trabalhar (...)”. E diz ele “a Cindy é
excepcionalmente boa naquela mão mas eu tenho, não sei porquê, a impressão que
o segredo dela está na outra mão, aquela que nunca está a dar a massagem.” E é esta mão da Cindy,
a mão não dominante que eu acho que nós temos que perceber na psicoterapia. Há
ali uma mão que a gente não sabe muito bem. Fazemos, seguimos o manual, dizemos
aqui e nunca sabemos, especificamente. Só para
acabar de responder a esta sua estimulante questão, uma vez uma paciente minha
que eu fiz o manual narrativo, tal e qual (aliás, julgo que descrevo num ou
noutro livro meu vários momentos do processo terapêutico). Lembro-me que no
final do processo terapêutico com ela, perguntei-lhe (como faço muitas vezes
com o paciente, para ver se os pacientes também me ajudam a perceber os grandes
ingredientes da mudança) quais foram os momentos mais importantes e ela disse:
“Ah! Foi uma vez, aí na terceira consulta, numa sessão
muito difícil eu estive a falar da minha vida, em como hipotequei a minha vida
a isto, àquilo, aqueloutro e tal... um dia muito cinzento num sítio lá em Braga
numa rua muito escura, estava muito chuvoso e no final da consulta o senhor fez
uma coisa... foi o momento talvez mais importante que mudou um pouco o meu
processo terapêutico.” E Eu perguntei-lhe então o que é que foi. Parece que no final da
consulta, quando a consulta estava a acabar (de facto eu lembro-me de ter sido
uma consulta muito dura para ela) quando ela se ia a dirigir para a saída eu
fiz uma coisa (permitam-me a imodéstia, enfim, deixá-la aqui imortalizada nesta
imagem), eu peguei no casaco dela e pus-lhe o casaco sobre os ombros. Foi uma
técnica psicoterapêutica que me ensinou a minha mãezinha quando tínhamos
visitas em casa. E ela relata aquilo como tendo sido o elemento crucial para
ela. Então ela saiu (a história não acaba aí), ela saiu, dirigiu-se a uma
mercearia em frente e comprou um chocolate twix (perdoem a publicidade)
e a partir daí sempre que ia à consulta ia à mercearia em frente consultar,
comprar o chocolate twix. Eu costumo depois dizer que não sei
muito bem se foi o casaco, se foi o processo terapêutico, se foi o chocolate twix e as interferências da dopamina no chocolate. O que eu quero dizer com
isto: não sabemos ao certo, há um conjunto de coisas que nós não temos a certeza
mas temos que perceber o que é que está, do conjunto destas coisas - bom, falar
da massagem e falar do casaco. O Michael Meaney (não é Mahoney é o Meaney) há
uns anos - que é um dos grandes investigadores do comportamento animal, como
vocês sabem, uma das formas como as ratas mãe vão tratando das suas crias, na
área das neurociências chama-se o licking and grooming (o lamber, o assear...
portanto, estão constantemente a fazer isso). Ratas que são submetidas a
situações de stress diminuem muito esse licking and grooming e as crias das mães que
não fazem licking and grooming (hoje em dia até é
possível fazer um shut-off de determinados genes e eles não fazem
essa estimulação corporal) ficam muito mais vulneráveis ao stress. Portanto,
aquilo tem uma função protetora. Portanto, essa massagem, esse tratamento é
altamente protector. Depois se já mais tarde pusermos mães substitutas que
fazem licking and grooming as crias ganham
plasticidade, portanto melhoram. O que o Michael Meaney foi fazer foi ver o que
é que faz o licking and grooming, em termos dos
neurotransmissores. Portanto, mostrou em termos de uns receptores específicos
da serotonina um aumento da expressividade desses receptores, portanto, dos
processos neurobiológicos que estão subjacentes a isso. E, portanto, eu diria
que na psicoterapia (como você diz e muito bem) muitas vezes nós não vamos
descobrir nada de novo porque há muitas coisas que nós estamos a fazer bem. Vão
sobreviver neste processo de seleção natural e possivelmente outras poderemos
aperfeiçoar a partir daí. Mas esse é o fascínio às vezes - de percebermos
aquilo que estávamos a... a razão neurocientífica que está por detrás daquilo
que estávamos a fazer.
M.M.: Muito obrigado.
A.H.: Muito bem. Mais alguma questão?
Cacilda Nordeste: Eu por acaso tinha uma mas entretanto com esta resposta já
foi respondendo, que era: apesar deste novo caminho das neurociências como é
que seria, hoje em dia, o Óscar clínico...
O.G.: Eu ainda sou! Eu ainda sou clínico. Não deixei... eu vejo entre 12 a 15
pacientes por semana. Portanto, penso que é uma (juntamente com o...) é uma
carga clínica considerável. E essa é uma questão que eu me coloco várias vezes
– Sou melhor clínico ou sou pior clínico à medida que
vou percebendo melhor cada um destes processos? Seguramente sou
diferente (não sei se sou melhor, se sou pior - sou diferente). Julgo que sou
mais focalizado no meu trabalho. As neurociências têm me ajudado a focalizar
mais especificamente no meu trabalho, a fazer um conjunto de trabalhos ou
tarefas terapêuticas mais orientadas, mais focalizadas naquilo que me parece
ser importante no paciente. Dou por mim mais atento a processos psicológicos,
por exemplo, a que eu dava menos atenção. Durante muito tempo o meu trabalho
foi com o trabalho com a linguagem, por causa do trabalho da narrativa. A
narrativa, nesse aspecto, é um processo curioso porque não é só linguagem – é
linguagem, é memória, é atenção, é processamento emocional, é funcionamento
executivo, é processamento sensorial. De facto, a linguagem é um processo
integrativo em termos neurocognitivos (essa é a sua força e é a sua fraqueza, a
sua inespecificidade) e, portanto, hoje em dia dou por mim a ir mais
modularmente a processos que têm mais a ver com a atenção, a exercitar mudanças
de atenção, coisas mais específicas em termos de linguagem, a trabalhar coisas
mais específicas em termos da memória. Isso eram coisas que eu já trabalhava na
narrativa... memória episódica, enriquecimento de memória episódica... Por
exemplo, foi no trabalho até das demências (de como na recuperação dos
processos... no início de um processo de demência nós utilizamos coisas da
narrativa que são muito curiosas, que já fazíamos na psicoterapia mas agora
fazemos nas neurociências), vamos buscar acontecimentos biográficos específicos
e trabalhamo-los sensorialmente e hoje em dia sabemos porquê. Sabemos que esse
trabalho sensorial mais contextualizado é um dos trabalhos centrais da memória
do hipocampo e, portanto, é uma das que é primariamente afectada no início da
maior parte dos processos comuns da perda demencial. Sabemos, também, que se
intensificarmos a emocionalidade no processamento destas memórias
autobiográficas, facilitamos conexões amigdalo-hipocampais e, portanto, fixamos
mais essas memórias. E, por exemplo, como é que nós agora coisas que sabíamos
da psicoterapia trazemos para a neurologia e da neurologia reforçamos na
psicoterapia. Por, exemplo, nos pacientes depressivos uma das coisas que a
investigação nos tem mostrado é que as memórias autobiográficas são habitualmente
memórias mais inespecíficas (aquilo que alguns investigadores chamam de
memórias mais sobregeneralizadas. Hoje em dia percebemos que possivelmente está
ligado a alguns (sobretudo nos tipos de depressão mais induzidas por stress, burnout, coisas desse género), mais ligadas a perdas hipocampais. Ao reforçarmos
memória mais episódica, autobiográfica mais episódica (sobretudo no quotidiano,
a que estamos a desenvolver – memória anterógrada), nós estamos... por exemplo,
trabalhava muito memória retrógrada na psicoterapia, agora trabalho mais
memória anterógrada (parece-me mais importante na maior parte dos pacientes,
sobretudo nos pacientes de espectro mais depressivo). E, portanto, noto que há
um aumento deste grau de especificidade que tem me ajudado a guiar e,
seguramente, não me tem desencorajado de fazer psicoterapia, bem pelo
contrário.
A.H.: Muito bem. Óscar, obrigadíssimo, foi fantástico.”
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