sexta-feira, 6 de julho de 2012

Para Pensar


Afinal o que leva alguém a mentir? Aqui fica um excerto do livro Deixa-me que te Conte, com o objetivo de ajudar a perceber a razão da mentira. Provavelmente nem toda a gente concorda com a visão e explicação de Jorge Bucay, mas a verdade é que faz pensar.

O facto de alguém poder estar a mentir quando dizia a verdade e a sua lógica contrapartida, isto é, a possibilidade de ser veraz dizendo falsidades, desestabilizou por completo algumas ideias com que eu andava na cabeça.
- Isso é terrível, Jorge - disse. - Isso significa que a verdade se transforma num conceito absolutamente subjectivo e, por conseguinte, relativo.
- Seja como for, no fim de contas, o que se desestabiliza é o conceito de mentir e não o conceito de verdade. A verdade poderia continuar a ser absoluta, ainda que admitíssemos que declarar como verdadeiras algumas falsidades não fosse mentir. No entanto, como a nossa ideia da verdade está intimamente relacionada com o nosso sistema de crenças, cairemos sempre na tua conclusão (com a qual concordo por esta e por outras razões): a verdade é relativa, subjectiva e, permite-me acrescentar mais uma coisa, mutável e parcial.
- Tens razão - admiti. - E nada muda o que te dizia antes. Irrita-me que me mintam. Dito de outra maneira, seja correcta ou não, irrita-me que me digam uma coisa que sei que não é verdade. Nem sequer a verdade relativa, subjectiva e parcial de quem a diz. Irrita-me que me mintam.
- E porque pensas que te mentem?
- Outra vez? - disse eu. - Outra vez?
- Quero perguntar-te porque pensas que TE mentem a ti.
- Como, porquê? É a mim que contam as mentiras em causa - respondi, irritado.
- Não te irrites. Eu penso que, quando alguém mente, mente! Isto é: não TE mente; não ME mente. Simplesmente, MENTE! Na melhor das hipóteses, mente a SI próprio.
- Não!
- Sim! Porque é que as pessoas mentem, Damião? Pensa bem. Para quê?
- Eu lá sei! Por mil razões...
- Diz-me uma. Por exemplo, na questão que fez com que chegasses de mau humor à consulta.
- A pessoa mentiu para esconder uma coisa que fez mal.
- E isso para quê?
- Para que a outra pessoa não a julgue.
- E porque é que não quer que o outro a julgue?
- Porque sabe que a outra pessoa a condenaria.
- E porque é que não quer que o outro a condene?
- Porque lhe importa a opinião da outra pessoa.
- E?
- E... não quer ter de pagar as favas.
- Ou seja, para não ter de se responsabilizar.
- Claro.
- Está bem. Digamos que esse é o motivo de noventa e nove por cento das mentiras.
- Suponho que seja.
- Está bem. E como é que o mentiroso sabe que deveria responsabilizar-se pelo que fez? Quem determina a sua responsabilidade?
- Ninguém! Sei lá! Ele próprio.
- Isso. Ele próprio.
- E?
- Não vês? O mentiroso não é alguém que teme o resultado da opinião do outro, nem a condenação daí decorrente. O mentiroso já se julgou a si mesmo e condenou-se, percebes? O assunto já foi julgado. O mentiroso esconde-se do seu próprio juízo de valor, da sua própria condenação e da sua própria responsabilidade. Como te disse, o problema não é do outro, é da pessoa que mente.
Fiquei gelado. Estava certíssimo. Eu sabia porque o tinha constatado pelo lado de fora e pelo lado de dentro. Eu mentia sempre que me julgava e condenava a mim mesmo.
- Mas é verdade que me mente!
- Tão verdade como o que a minha mãe dizia do meu irmão Cacho: "Ele não me come nada." O meu irmão não LHE comia a carne, nem LHE comia a sopa, nem LHE provava o pudim flã "que é tão nutritivo"...
- Não, não é a mesma coisa. Quando alguém me mente, mente-ME a mim.
- Não, Damião. Aceito que penses que és o centro do teu mundo. De facto, és. Mas NÃO és o centro DO mundo. A pessoa mente. Não te mente a TI. Fá-lo porque decide fazê-lo, porque lhe convém ou porque lhe apetece. Esse é um privilégio DELA. Dizer que TE mente leva-te a criar um delírio auto-referencial em que algo que na realidade é um problema dela se transforma num problema TEU. Não te irrites!
- Mas é um problema dela?
- Mentir para fugir a uma responsabilidade é um sintoma. Quantas vezes concluímos juntos que, em última instância, a neurose não passa de uma maneira de as pessoas não serem adultas, de fugirem às responsabilidades inerentes ao crescimento?
- Não sei. Tenho de pensar. Na vida do dia-a-dia, o mentiroso sai a ganhar, não se irrita, não se cansa.
- Mesmo que isso fosse verdade, a justiça não tem nada a ver com a saúde. Além do mais, tudo depende do que entendes por sair a ganhar.
"Conseguir que as coisas sejam de determinada maneira por causa de uma mentira é difícil. Creio que, quanto muito, uma mentira pode conseguir que as coisas sucedam durante uns tempos de uma maneira mais conforme com os desejos da pessoa que mente (ainda que ela saiba interiormente que essa forma é falsa, fictícia, colada a cuspo, assente na sua mentira).
- Não mentimos por esse motivo, ou pelo menos não o fazemos deliberadamente. Acho que, seja como for, minto para tentar controlar uma situação.
- Isto é, para teres poder...
- Sim, de certo modo, poder. Sou eu quem sabe a verdade. Eu faço-te agir. Eu engano-te. Eu canso-te. Eu irrito-te... É um poder tramado, mas ainda assim é poder.”



Jorge Bucay

Livro: Deixa-me que te Conte

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