Afinal o que leva alguém a mentir? Aqui fica um excerto do
livro Deixa-me que te Conte, com o objetivo de ajudar a perceber a razão da
mentira. Provavelmente nem toda a gente concorda com a visão e explicação de
Jorge Bucay, mas a verdade é que faz pensar.
“O
facto de alguém poder estar a mentir quando dizia a verdade e a sua lógica
contrapartida, isto é, a possibilidade de ser veraz dizendo falsidades,
desestabilizou por completo algumas ideias com que eu andava na cabeça.
-
Isso é terrível, Jorge - disse. - Isso significa que a verdade se transforma
num conceito absolutamente subjectivo e, por conseguinte, relativo.
-
Seja como for, no fim de contas, o que se desestabiliza é o conceito de mentir
e não o conceito de verdade. A verdade poderia continuar a ser absoluta, ainda
que admitíssemos que declarar como verdadeiras algumas falsidades não fosse
mentir. No entanto, como a nossa ideia da verdade está intimamente relacionada
com o nosso sistema de crenças, cairemos sempre na tua conclusão (com a qual
concordo por esta e por outras razões): a verdade é relativa, subjectiva e,
permite-me acrescentar mais uma coisa, mutável e parcial.
-
Tens razão - admiti. - E nada muda o que te dizia antes. Irrita-me que me
mintam. Dito de outra maneira, seja correcta ou não, irrita-me que me digam uma
coisa que sei que não é verdade. Nem sequer a verdade relativa, subjectiva e
parcial de quem a diz. Irrita-me que me mintam.
-
E porque pensas que te mentem?
-
Outra vez? - disse eu. - Outra vez?
-
Quero perguntar-te porque pensas que TE mentem a ti.
-
Como, porquê? É a mim que contam as mentiras em causa - respondi, irritado.
-
Não te irrites. Eu penso que, quando alguém mente, mente! Isto é: não TE mente;
não ME mente. Simplesmente, MENTE! Na melhor das hipóteses, mente a SI próprio.
-
Não!
-
Sim! Porque é que as pessoas mentem, Damião? Pensa bem. Para quê?
-
Eu lá sei! Por mil razões...
-
Diz-me uma. Por exemplo, na questão que fez com que chegasses de mau humor à
consulta.
-
A pessoa mentiu para esconder uma coisa que fez mal.
-
E isso para quê?
-
Para que a outra pessoa não a julgue.
-
E porque é que não quer que o outro a julgue?
-
Porque sabe que a outra pessoa a condenaria.
-
E porque é que não quer que o outro a condene?
-
Porque lhe importa a opinião da outra pessoa.
-
E?
-
E... não quer ter de pagar as favas.
-
Ou seja, para não ter de se responsabilizar.
-
Claro.
-
Está bem. Digamos que esse é o motivo de noventa e nove por cento das mentiras.
-
Suponho que seja.
-
Está bem. E como é que o mentiroso sabe que deveria responsabilizar-se pelo que
fez? Quem determina a sua responsabilidade?
-
Ninguém! Sei lá! Ele próprio.
-
Isso. Ele próprio.
-
E?
-
Não vês? O mentiroso não é alguém que teme o resultado da opinião do outro, nem
a condenação daí decorrente. O mentiroso já se julgou a si mesmo e condenou-se,
percebes? O assunto já foi julgado. O mentiroso esconde-se do seu próprio juízo
de valor, da sua própria condenação e da sua própria responsabilidade. Como te
disse, o problema não é do outro, é da pessoa que mente.
Fiquei
gelado. Estava certíssimo. Eu sabia porque o tinha constatado pelo lado de fora
e pelo lado de dentro. Eu mentia sempre que me julgava e condenava a mim mesmo.
-
Mas é verdade que me mente!
-
Tão verdade como o que a minha mãe dizia do meu irmão Cacho: "Ele não me
come nada." O meu irmão não LHE comia a carne, nem LHE comia a sopa, nem
LHE provava o pudim flã "que é tão nutritivo"...
-
Não, não é a mesma coisa. Quando alguém me mente, mente-ME a mim.
-
Não, Damião. Aceito que penses que és o centro do teu mundo. De facto, és. Mas
NÃO és o centro DO mundo. A pessoa mente. Não te mente a TI. Fá-lo porque
decide fazê-lo, porque lhe convém ou porque lhe apetece. Esse é um privilégio
DELA. Dizer que TE mente leva-te a criar um delírio auto-referencial em que
algo que na realidade é um problema dela se transforma num problema TEU. Não te
irrites!
-
Mas é um problema dela?
-
Mentir para fugir a uma responsabilidade é um sintoma. Quantas vezes concluímos
juntos que, em última instância, a neurose não passa de uma maneira de as
pessoas não serem adultas, de fugirem às responsabilidades inerentes ao
crescimento?
-
Não sei. Tenho de pensar. Na vida do dia-a-dia, o mentiroso sai a ganhar, não
se irrita, não se cansa.
-
Mesmo que isso fosse verdade, a justiça não tem nada a ver com a saúde. Além do
mais, tudo depende do que entendes por sair a ganhar.
"Conseguir
que as coisas sejam de determinada maneira por causa de uma mentira é difícil.
Creio que, quanto muito, uma mentira pode conseguir que as coisas sucedam
durante uns tempos de uma maneira mais conforme com os desejos da pessoa que
mente (ainda que ela saiba interiormente que essa forma é falsa, fictícia,
colada a cuspo, assente na sua mentira).
-
Não mentimos por esse motivo, ou pelo menos não o fazemos deliberadamente. Acho
que, seja como for, minto para tentar controlar uma situação.
-
Isto é, para teres poder...
-
Sim, de certo modo, poder. Sou eu quem sabe a verdade. Eu faço-te agir. Eu
engano-te. Eu canso-te. Eu irrito-te... É um poder tramado, mas ainda assim é
poder.”
Jorge Bucay
Livro: Deixa-me que te Conte
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